Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Abre teu cu e tua mente se abrirá!

Este é um livro sobre o cu, um livro em torno do cu, um livro escrito a partir de dentro do cu. Mas não é um livro que busque alguma verdade sobre o prazer anal, nem é um manual de auto-ajuda anal, nem uma aproximação antropológica nem científica que ofereça um saber para olhares curiosos sobre o “outro”. Não vamos descobrir uma nova tribo para os antropólogos de hoje em dia, nem vamos criar novas taxonomias a serviço de uma sexologia moderna, progressista e até mesmo queer. Não é um livro que tenha esperança numa suposta “liberação” sexual pelo cu, ou que exalte o sexo anal como o natural e o saudável, ou como panacéia de prazer e a felicidade entre os seres. Não vamos pedir que ninguém prometa conosco votos de amor em uma espécie de chakra Muladhara anal que nos levará à iluminação e à paz.  Tampouco é um livro de confissões ou narrações pessoais sobre nossos cus ou sobre aqueles que desejaram estar ali.
Trata-se de ver o que o cu põe em jogo. Ver porque provoca tanto desprezo pelo sexo anal, tanto medo, tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo,  tanto ódio.  E, sobretudo, mostrar que essa vigilância de nossos traseiros não é uniforme: depende se o cu penetrado é branco ou negro, se é o de uma mulher ou de um homem ou o de um/a trans, se no ato se é ativo ou passivo,  se é um cu penetrado por um dildo, um pau ou um punho, se o sujeito penetrado se sente orgulhoso ou envergonhado, se é penetrado com ou sem preservativo, se é um cu rico ou um cu pobre, si é católico ou mulçumano.  Nestas variáveis veremos despregar-se a polícia do cu, e também nelas se articulam a política do cu;  o poder se exerce em rede, é onde se constrói o ódio, o machismo, a homofobia e o racismo.
O cu parece muito democrático, todo mundo tem um. Porém, veremos que nem todo mundo pode fazer o que quiser com seu cu.
Queremos explorar um órgão ou um lugar que desafia a definição atual do que é o sexo e o genital. Não partiremos de uma hipótese repressiva. Seguindo as análises de Foucault em sua História da sexualidade, não acreditamos que exista um poder que reprima o prazer ou o sexo, nem mesmo o sexo anal. A penetração anal já há muito tempo faz parte do dispositivo da sexualidade; hoje em dia, o sexo anal é mostrado com freqüência, está em quase todos os filmes pornôs (hetero e gay), está nas novelas eróticas, nas lojas de brinquedos sexuais, no posporno, nas consultas sexológicas da televisão e da imprensa, está na arte, na fotografia, na pintura... Há numerosos guias didáticos e vídeos sobre o sexo anal.
Não, o sexo anal não é reprimido, ou, ao menos,  não de uma maneira uniforme. Não há unidade no dispositivo repressivo. O que veremos precisamente aqui são as incoerências que existem em torno do cu, em que medida estas contradições questionam o regime heterocentrado e machista em que vivemos, e até que ponto subvertem o dispositivo da sexualidade atual.
Para começar deixaremos um simples exercício a quem estiver lendo este livro: abre teu cu e tua mente se abrirá.
            
 (O texto que você acabou de ler é tradução livre da introdução do livro "Por el culo: políticas anales" de Javier Sáez e Sejo Carrascosa, editorial Egales) Compre aqui:  http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=22446938&sid=8927129441471288987045511                                                      

sábado, 5 de maio de 2012

NÃO SE NASCE MULHER (Texto de Monique Wittig)


NÃO SE NASCE MULHER[i]

Quando se analisa a opressão das mulheres com um enfoque materialista e feminista[ii], se destrói a ideia de que as mulheres são um grupo natural, ou seja, “um grupo racial de um tipo especial: um grupo natural, um grupo de homens considerado como materialmente específico em seus corpos”[iii].  O que a análise consegue ao nível das ideias, a prática torna efetiva ao nível dos fatos: somente por sua simples existência uma sociedade lésbica destrói o fato artificial (social) que constitui as mulheres como “grupo natural”. Uma sociedade lésbica[iv] revela, pragmaticamente, que essa separação dos homens da qual as mulheres têm sido objeto é política, e mostra que temos sido reconstruídas como um “grupo natural”. No caso das mulheres, a ideologia vai longe, já que nossos corpos, assim como nossas mentes, são os produtos dessa manipulação. Em nossas mentes e em nossos corpos nos fazem corresponder, traço a traço, com a ideia de natureza que tem sido estabelecida para nós. Somos manipuladas até o ponto em que nosso corpo deformado é o que chamam “natural”, o que supostamente existia antes da opressão; tão manipuladas que finalmente a opressão parece ser uma conseqüência desta “natureza” que está dentro de nós mesmas (uma natureza que  é somente uma ideia).  O que uma análise materialista faz por meio do raciocínio, uma sociedade lésbica o realiza de fato: não só não existe o grupo natural “mulheres” (nós, as lésbicas, somos a prova disso), mas, como indivíduos, também questionamos “a mulher”, algo que, para nós – como para Simone de Beauvoir - é somente um mito. Ela afirmou: “não se nasce mulher, torna-se. Não há nenhum destino biológico, psicológico ou econômico que determine o papel que as mulheres representam na sociedade: é a civilização como um todo que produz essa criatura intermediária entre o macho e o eunuco, que é qualificada como feminina”[v].
Contudo, a maioria das feministas e das lésbicas/feministas na América do Norte e em outros lugares ainda consideram que a base da opressão das mulheres é biológica e histórica. Algumas delas pretendem encontrar suas raízes em Simone de Beauvoir[vi]. A crença em um direito materno e em uma “pré-história” na qual as mulheres haveriam criado a civilização (devido a uma predisposição biológica) é simétrica à interpretação biologizante da história que tem sido feita, até hoje, pela classe dos homens. É o mesmo método que consiste em buscar nos homens e nas mulheres uma razão biológica para explicar sua divisão, excluindo os fatos sociais. Para mim,  isto nunca poderá constituir um ponto de partida para uma análise lésbica da opressão das mulheres, porque se pressupõe que a base ou a origem da sociedade humana está fundamentada necessariamente na heterossexualidade. O matriarcado não é menos heterossexual que o patriarcado: somente se muda o sexo do opressor. Ademais, esta concepção não somente segue assumindo as categorias de sexo (mulher e homem), como acaba mantendo a ideia de que a capacidade de dar a luz (ou seja, a biologia) é o que define a mulher.  E, ainda que numa sociedade lésbica os fatos e as formas de vida contradigam esta teoria,  há lésbicas que afirmam que “as mulheres e os homens pertencem a raças ou espécies (as duas palavras são utilizadas de forma intercambiável) distintas: os homens são biologicamente inferiores às mulheres;  a violência dos homens é um fenômeno biológico inevitável”[vii]. Ao fazer isto,  ao admitir que há uma divisão “natural” entre mulheres e homens, naturalizamos a história, assumimos que “homens” e “mulheres” sempre existiram e sempre existirão. Não somente naturalizamos a história como também, por conseqüência,  naturalizamos os fenômenos sociais que manifestam nossa opressão, tornando impossível qualquer mudança. Por exemplo,  não se considera a gravidez como uma produção forçada, mas como um processo “natural”, “biológico”, esquecendo que em nossas sociedades a natalidade é planificada (demografia), esquecendo que nós mesmas somos programadas para produzir crianças, mesmo que esta seja a única atividade social, “a exceção da guerra”,  que implica tanto perigo de morte[viii]. Enquanto formos “incapazes de abandonar, por vontade ou espontaneamente, a obrigação secular de procriar que as mulheres assumem como o ato criador feminino”[ix], o controle sobre essa produção de crianças significará muito mais que o simples controle dos meios materiais da referida produção. Para ganhar este controle as mulheres teriam que abstraírem-se da definição “a mulher”que lhes é imposta.
Uma análise feminista materialista mostra que aquilo que nós consideramos causa e origem da opressão é somente a “marca”[x] que o opressor impõe sobre os oprimidos: o “mito da mulher”[xi] com suas manifestações e efeitos materiais nas consciências e nos corpos apropriados das mulheres. A marca não pré-existe a opressão: Colette Guillaumin demonstrou que, antes da realidade socioeconômica da escravidão negra, o conceito de raça não existia, ou, pelo menos, não tinha seu significado moderno, pois designava a linhagem das famílias. Contudo, hoje, noções como raça e sexo são entendidas como um  “dado imediato”, “sensível”, um conjunto de “características físicas”, que pertencem a uma ordem natural. Mas, o que cremos ser uma percepção direta e física, não passa de uma construção sofisticada e mística, uma “formação imaginária”[xii] que reinterpreta traços físicos (em si mesmos tão neutros como qualquer outros, mas marcados pelo sistema social) por meio da rede de relações com as quais eles mesmos são percebidos. (Elas são vistas como negras, por isso são negras, elas são vistas como mulheres, por isso são mulheres. Não obstante, antes que sejam vistas desta maneira, elas tiveram que ser feitas desta maneira.). Ter uma consciência lésbica supõe nunca esquecer até que ponto ser “a-mulher” era para nós algo “contra natura”, algo limitador, totalmente opressivo e destrutivo  nos velhos tempos anteriores ao movimento de liberação das mulheres. Era uma constrição política e aquelas que resistiam eram acusadas de não ser “verdadeiras”mulheres. Porém estávamos orgulhosas disso, porque na acusação havia já  como uma sombra de triunfo: o reconhecimento, pelo opressor, de que “mulher”não é um conceito tão simples, porque para ser uma, era necessário ser uma “verdadeira”.  Ao mesmo tempo, éramos acusadas de querer ser homens. Hoje, esta dupla acusação tem sido retomada com entusiasmos no contexto do movimento de liberação das mulheres, por algumas feministas e também, por desgraça, por algumas lésbicas cujo objetivo político parece ser tornarem-se cada vez mais “femininas”. Porém, negar-se a ser uma mulher, contudo, não significa ter que ser um homem. Ademais,  se tomarmos como exemplo a perfeita “butch”[xiii] – o exemplo clássico que provoca mais horror, ao qual Proust chamou de mulher/homem – em que difere a sua alienação daquela de alguém que quer se tornar mulher? Tal qual. Ao menos, para uma mulher, querer ser um homem significa que se escapou de sua programação inicial. Entretanto, ainda que desejasse com todas as suas forças, não poderia chegar a ser um homem, porque isso lhe exigiria não somente ter uma aparência externa de homem, mas também ter uma consciência de homem, ou seja,  a consciência de alguém que dispõe, por direito, de dois - senão mais – escravos “naturais”durante a vida. Isto é impossível, uma das características da opressão das lésbicas consiste, precisamente em que colocamos as mulheres fora de nosso alcance, já que as mulheres pertencem aos homens. Assim, uma lésbica deve ser qualquer outra coisa, uma não-mulher, um não-homem, um produto da sociedade e não da “natureza”, porque não há “natureza”na sociedade.
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            Rejeitar converter-se em heterossexual (ou manter-se como tal) sempre significou, conscientemente ou não, negar-se a converter-se numa mulher, ou num homem. Para uma lésbica isso vai mais longe do que a mera rejeição do papel de “mulher”. É a rejeição do poder econômico, ideológico e político de um homem.  Isto, nós lésbicas, e também muitas que não o eram, já o sabiamos antes do movimento feminista e lésbico. Contudo, como assinala Andrea Dworkin, muitas lésbicas recentemente “tentaram transformar cada vez mais a própria ideologia que nos escravizou em uma celebração dinâmica, religiosa, psicologicamente coercitiva do potencial biológico feminino”[xiv]. Deste modo, algumas tendências do movimento feminista e lésbico conduzem novamente ao mito da mulher que havia sido criado especialmente para nós pelos homens, e com ele voltamos a cair em um grupo natural. Nos levantamos para lutar por uma sociedade sem sexos[xv]; agora nos encontramos presas na armadilha familiar de que “ser mulher é maravilhoso”. Simone de Beauvoir apontou precisamente a falsa consciência que consiste em selecionar dentre as características do mito (que as mulheres são diferentes dos homens) aquelas que parecem agradáveis, e utilizá-las para definir as mulheres. Utilizar isso de que “é maravilhoso ser mulher”, supõe assumir, para definir as mulheres, os melhores traços (melhores em relação a quem?) que a opressão nos tem assinalado, e que supõe não questionar radicalmente as categorias “homem” e “mulher”, que são categorias políticas (e não dados naturais). Isto nos leva a lutar dentro da classe “mulheres”, não como fazem as outras classes, pela desaparição de nossa classe, mas pela defesa da “mulher”e seu fortalecimento. Isso não nos conduz a desenvolver com complacência “novas” teorias sobre nossa especificidade: assim, chamamos a nossa passividade de “não-violência”, quando nossa luta mais importante e emergente é combater a nossa passividade (nosso medo, que está justificado). A ambiguidade da palavra “feminista” resume toda a situação. O que significa “feminista”? Feminismo contém a palavra “femina” (“mulher”), e significa: alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nós, significa alguém que luta pelas mulheres como classe e pela desaparecimento dessa classe. Para muitas outras, isto quer dizer alguém que luta pela mulher e pela sua defesa – pelo mito, portanto, e seu fortalecimento.
Mas, por que foi escolhida a palavra “feminista” se é tão ambígua? Escolhemos chamarmo-nos “feminista” faz dez anos, não para apoiar ou fortalecer o mito da mulher, nem para identificarmo-nos com a definição que o opressor faz de nós, mas para afirmar que nosso movimento tem uma história e para sublinhar o laço político com o primeiro movimento feminista.
É este o movimento que é preciso colocar em questão, pelo significado que é dado à palavra feminismo. O feminismo do século passado nunca foi capaz de solucionar suas contradições em assuntos como natureza/cultura, mulher/sociedade. As mulheres começaram a lutar por si mesmas como um grupo e consideraram acertadamente que compartilhavam aspectos de opressões comuns. Mas, para elas, estes aspectos eram naturais e biológicos, e não traços sociais. Chegaram ao ponto de adotar a teoria darwinista da evolução. Não acreditavam, como Darwin, “que as mulheres estavam menos evoluídas que os homens, mas acreditavam que a natureza tanto dos homens quanto das mulheres havia divergido no curso do processo evolutivo e que a sociedade em geral refletia a essa polarização”[xvi]. “O fracasso do primeiro feminismo provem do fato de que só atacaram a ideia darwinista da inferioridade da mulher, mas aceitaram os fundamentos dessa ideia, ou seja, a visão da mulher como “única””[xvii]. E, finalmente, foram as mulheres universitárias – e não as feministas – que acabaram cientificamente com essa teoria. As primeiras feministas não lograram olhar para a história como um processo dinâmico que se desenvolve pelos conflitos de interesse. Elas ainda acreditavam, como os homens, que a causa (origem) de sua opressão se encontrava nelas. E, depois de alguns triunfos, as feministas dessa primeira onda se encontraram em frente a um beco sem saída, sem razões para continuar lutando. Elas sustentavam o princípio ilógico da igualdade na diferença, uma ideia que hoje está renascendo. Caíram na armadilha que hoje nos ameaça outra vez: o mito da “mulher”.
É nossa tarefa histórica, somente nossa, definir em termos materialistas o que chamamos opressão, analisar as mulheres como classe, o que equivale a categoria “mulher” e a categoria “homem”, são categorias políticas e econômicas, portanto, não são eternas. Nossa luta intenciona fazer desaparecer os homens enquanto classe, não como um genocídio, mas como uma luta política. Quando a classe dos “homens” tiver desaparecido, as mulheres como classe desaparecerão também, porque não haverá escravos sem senhores. Nossa primeira tarefa, me parece, é sempre tratar de distinguir cuidadosamente entre as “mulheres” (a classe da qual lutamos) e “a-mulher”, o mito. Porque a “mulher” não existe para nós: é somente uma formação imaginária, enquanto que as “mulheres” são o produto de uma relação social. Sentimos isto claramente quando não aceitamos que nos chamassem “movimento de liberação da mulher[xviii]. Mais ainda, temos que destruir o mito dentro e fora de nós mesmas. A “mulher” não é cada uma de nós, mas uma construção política e ideológica que nega a “as mulheres” (o produto de uma relação de exploração). “A mulher” existe para nos confundir, para ocultar a realidade “das mulheres”. Para chegar a ser uma classe, para ter uma consciência de classe, temos primeiro que matar o mito “da mulher”, incluindo os seus traços mais sedutores (penso em Virgínia Wolf quando dizia que a primeira tarefa de uma mulher escritora é “matar o anjo do lar”). Mas constituir-se como classe não significa que devamos nos suprimir como individuo. Já que nenhum indivíduo pode ser reduzido a sua opressão, nos vemos também confrontadas com a necessidade histórica de  nos construir como sujeitos individuais em nossa história. Creio que esta é a razão pela qual estão proliferando agora todas estas tentativas de dar “novas” definições à mulher. O que está em jogo (não somente para as mulheres) é uma definição de individuo, assim como uma definição de classe. Porque, quando se admite a opressão, se faz necessário saber e experimentar o fato de que alguma pode constituir-se em sujeito (como o contrário, em objeto de opressão), que alguma pode converter-se em alguém apesar da opressão, que alguma tem sua própria identidade. Não há luta possível para alguém privado de uma identidade; carece de uma motivação interna para lutar, porque, ainda que eu só possa lutar com os outros, primeiro luto por mim mesma.
A questão do sujeito individual tem sido historicamente uma questão difícil. O marxismo, último avatar do materialismo, a ciência que nos formou politicamente, nada quer saber sobre o “sujeito”. O marxismo rejeitou o sujeito transcendental, a “pura” consciência, o sujeito “em si” como constitutivo do conhecimento. Tudo o que pensa “em si”, previamente a qualquer experiência, acabou na lixeira da história; tudo o que pretendia existir por cima da matéria, antes da matéria, necessitava um deus, um espírito, ou uma alma para existir. Isto se chama idealismo. Quanto aos indivíduos, eles são somente o produto de relações sociais e, por isso, sua consciência só pode estar “alienada”. (Marx, em A Ideologia Alemã, disse, precisamente, que os indivíduos da classe dominante também estão alienados, mesmo que sejam eles os produtores diretos das ideias que alienam as classes por eles oprimidas. Porém, como retiram óbvias vantagens de sua própria alienação, podem suportá-la sem muito sofrimento). A consciência de classe existe, mas é uma consciência que não se refere a um sujeito em particular, salvo quando participa das condições gerais de exploração ao mesmo tempo que os outros sujeitos de sua classe, que compartilham todos a mesma consciência. Quanto aos problemas práticos de classe – fora os problemas definidos tradicionalmente como de classe – que podemos encontrar (por exemplo, os problemas chamados sexuais), foram considerados problemas “burgueses” que desapareceriam com o triunfo final da luta de classes. “Individualista”, “subjetivista”, “pequeno-burguês”, estas foram as etiquetas que se aplicaram a qualquer pessoa que expressasse problemas que não podiam reduzir-se aos da “luta de classes” propriamente dita.
O marxismo negou aos integrantes das classes oprimidas o atributo de sujeitos. Ao fazer isso, o marxismo, a causa do poder político e ideológico que esta “ciência revolucionária” teve imediatamente sobre o movimento operário e os outros grupos políticos, impediu a todas as categorias das pessoas oprimidas que se constituíam historicamente como sujeitos (como sujeitos de suas lutas, por exemplo). Isto significa que as “massas” não lutavam por elas mesmas, mas pelo (o) partido ou suas organizações. E quando uma transformação econômica teve lugar (finda a propriedade privada, constituição do estado socialista), nenhuma mudança revolucionária teve lugar na nova sociedade, porque as próprias pessoas não haviam mudado.
Para as mulheres, o marxismo teve duas consequências. Tornou impossível que tomassem consciência de que eram uma classe e, portanto, as impediu de constituírem-se como classe durante muito tempo, deixando a relação “mulher/homem” fora da ordem social, fazendo dela uma relação “natural” – sem dúvida, a única relação vista dessa maneira pelos marxistas, junto com a relação entre mulheres e filhos – , e ocultando, finalmente, o conflito de classe entre homens e mulheres através de uma divisão natural do trabalho (A Ideologia Alemã). Isto no que se refere ao nível teórico (ideológico). Na prática, Lenin, o partido, todos os partidos comunistas até hoje, incluindo a todos os grupos políticos mais radicais, sempre reagiram contra qualquer tentativa das mulheres de refletir e formar grupos baseados em seu próprio problema de classe, com acusações de divisionismo. Ao unirmo-nos, nós, as mulheres, dividimos a força do povo. Isto significa que, para os marxistas, as mulheres pertencem, seja a classe burguesa ou a classe operária, aos homens dessas classes. Mais ainda, a teoria marxista não permite às mulheres, como à outras classes de pessoas oprimidas, que se constituam como sujeitos históricos, porque o marxismo não leva em conta que uma classe também consiste em indivíduos, um por um. A consciência de classe não é suficiente. Temos que tentar entender filosoficamente (politicamente) estes conceitos de “sujeito” e “consciência de classe” e como funcionam em relação a nossa história. Quando descobrimos que as mulheres são objeto de opressão e apropriação, no momento exato que somos capazes de reconhecer isso, nos convertemos em sujeitos em sentido de sujeitos cognitivos, por meio de uma operação de abstração. A consciência da opressão não é somente uma reação (uma luta) contra a opressão: supõe também uma total reavaliação conceitual do mundo social, sua total reorganização com novos conceitos, desenvolvidos a partir do ponto de vista da opressão. É o que eu chamaria de ciência da opressão, criada pelos oprimidos. Esta operação de entender a realidade tem que ser empreendida por cada uma de nós: designamo-las de práticas subjetivas, cognitivas. Este movimento de ir e vir entre os dois níveis da realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão, que são, ambas, realidades sociais) se conquista através da linguagem.
            Somos nós mesmas que historicamente temos que realizar esta tarefa de definir o que é um sujeito individual em termos materialistas. Isto parece ser impossível, porque o materialismo e a subjetividade sempre foram vistos como coisas excludentes. Longe de nos desesperarmos, por não entendê-lo, temos que compreender o abandono por muitas de nós do mito da “Mulher” (que é somente uma miragem que nos distrai em nosso caminho); ele se explica pela necessidade que cada ser humano tem de existir como indivíduo, e também como membro de uma classe. Esta talvez seja a primeira condição para que se consuma a revolução que desejamos, sem a qual não há luta real ou transformação. Mas, paralelamente, sem classe nem consciência de classe não há verdadeiros sujeitos, somente indivíduos alienados. Para as mulheres, responder ao questionamento acerca do sujeito individual em termos materialistas consiste,  em primeiro lugar,  em mostrar, como o fizeram as feministas e as lésbicas, que os problemas supostamente subjetivos, “individuais” e “privados” são, de fato, problemas sociais, problemas de classe; que a sexualidade não é, para as mulheres,  uma expressão individual e subjetiva, mas uma instituição social e violenta. Porém, uma vez que tenhamos mostrado que todos os nossos problemas supostamente pessoais são, de fato, problemas de classe, ainda nos faltará responder ao problema do sujeito de cada mulher, tomada separadamente;  não o mito, mas cada uma de nós. Neste ponto, creio que somente mais além das categorias de sexo (mulher e homem) pode encontrar-se uma nova e subjetiva definição de pessoa e de sujeito para toda a humanidade, e que o surgimento de sujeitos individuais exige destruir primeiro as categorias de sexo, eliminando seu uso,  e rejeitando todas as ciências que ainda utilizam tais categorias como seu fundamento (praticamente todas as ciências humanas).
Porém, destruir “a mulher” não significa que nosso propósito seja a destruição física do lesbianismo simultaneamente com a categoria de sexo, porque o lesbianismo oferece, de momento, a única forma social na qual podemos viver livremente. Além disso, lésbica é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lésbica) não é uma mulher nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. O que constitui uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que temos chamado de servidão, uma relação que implica obrigações pessoais e físicas e também econômicas (“a determinação de uma residência fixa”[xix], trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação da qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornarem-se ou continuar sendo heterossexuais. Somos desertoras de nossa classe, como foram os escravos americanos fugitivos quando escapavam da escravidão e se tornavam livres. Para nós, esta é uma necessidade absoluta; nossa sobrevivência exige que nos dediquemos com todas  as nossas forças a destruir essa classe – as mulheres-  com a qual os homens se apropriam das mulheres.  Isto só pode ser alcançado por meio da destruição da heterossexualidade como um sistema social baseado na opressão das mulheres e dos homens, um sistema que produz o corpo de doutrinas da diferença entre os sexos para justificar esta opressão.


[i] Texto publicado pela primeira vez em Femist Issues 1, n 2 (inverno 1981). Este texto não foi traduzido diretamente do idioma no qual foi escrito. Como não dispúnhamos do texto na língua original e precisávamos difundi-lo entre as pessoas do grupo, muitas das quais não se sentem aptas a realizar uma leitura em língua espanhola, acabamos por nos valer da tradução espanhola feita por Javier Sáez e Paco Vidarte. Trata-se de uma tradução de tradução, por tanto, todo cuidado é pouco. Referência:WITTIG, M. El pensamiento heterosexual y otros ensaios. Madrid: EGALES, 2006.
[ii] DELPHY, C.: “Por um feminism materialista”, L’Arc, n 6, 1975. Artigo recolhido em L’ennemi principal, tomo 1, Paris, Syllepse, 1998.
[iii] GULLAUMIN, C.: “Raça E natureza: sistema de marcas, ideias de grupos naturais e relações sociais”, Pluriel, n 11, 1997. Artigo disponível em Sexo, raça e Prática de poder, Paris, Côte-femmes, 1992.
[iv] Utilizo o termo “sociedade”em um sentido antropológico amplo, pois falando propriamente não se trata  de “sociedades”, dado que as sociedades lésbicas não existem de forma completamente autônoma, a margem dos sistemas sociais heterossexuais.
[v] DE BEAUVOIR, S.: O Segundo sexo. México, Alianza?Siglo XXI, 1989, p.240.
[vi] Redstockings: Feminist Revolution, New York, Random House, 1978, p.18.
[vii] DWORIN, A.: “Biological Superiority, The World’s Most Dangerous and Deadly idea”, Heresies, 6: 46.
[viii] ATKINSON, T-G.:  Amazon Odyssey, New York, links Boojs, 1974, p.15.
[ix] DWORKIN, A. Ibidem.
[x] GUILLAUMIN,C.: Ibidem.
[xi] DE BEAUVOIR, S.: Ibidem.
[xii] GUILLAUMIN, C.: Ibidem.
[xiii] Lésbica hipermasculina. (N. dos T.)
[xiv] DWORKIN,A.: Ibidem.
[xv] ATKISON, T-G.:  Ibidem, p.6: “Se o feminismo quer ser lógico, deve trabalhar para obter uma sociedade sem sexo”.
[xvi] ROSENBERG, R.: “In Search of Woman’s Nature”, Feminist Studiesm otoño, 1975, p.144.
[xvii] Ibidem, p.146.
[xviii] Em um artigo publicado em L’Idiote Internationale (maio 1990), cujo o título original era “por um movimento de liberação das mulheres”.
[xix] ROCHEFORT, C.: Les stances à Sophie. Paris, Grasset, 1963.


domingo, 22 de abril de 2012

A culpa é do povo, mas quem é o povo?


TERÇA-FEIRA, 4 DE MAIO DE 2010


A culpa é do povo

JustificarOs meios de comunicação de massa batem, insistentemente, na tecla do "voto consciente". Batem nessa tecla com razão, afinal, nossas escolhas determinarão, em alguma medida, o ruma de políticas que afetarão nossas vidas. Então, para mudarmos alguma coisa precisamos votar conscientemente. A lógica desse discurso é a seguinte: da mesma forma que terminaríamos com um namorado ou uma namorada se ficássemos sabendo (conscientes) sermos vítimas de traição, é preciso saber (ficar consciente) de "quem é quem" no mundo da política para romper ou estabelecer uma relação útil. Sabemos ser importante votar de maneira consciente. Mas, se sabemos disso, por qual motivo acontecem tantos escândalos e não muda nada, ou quase nada, no panorama político? Se todos sabem que devem votar de maneira consciente, então, quem é o inconsciente da história? Ahh... Sim, o povo, sempre o povo! Tudo está como está por causa do povo, massa amorfa incapaz de mobilização e apática demais para buscar informações. Sendo assim, podemos dizer ser o povo merecedor do governo ao qual está submetido, confirmando a famosa frase: cada povo tem o governo que merece (frase que descobri, numa pesquisa rápida na internet, ser do filósofo Joseph-Marie de Maistre).
Duas perguntas: Se cada povo tem o governo que merece, será que não estamos contentes com nossos governantes por sermos eternos insatisfeitos? Não. E posso dizer isso de um modo tão definitivo pelo seguinte: não somos o povo. Quem está insatisfeito nunca é o povo. O insatisfeito nunca se identifica com ele. Afinal, quem é o povo? Quem é esse que, volta e meia, é considerado o responsável por colocar políticos corruptos no poder? Quem é esse que, além de colocar políticos corruptos no poder, não faz nada diante da corrupção?
O povo é o ingênuo, o ignorante, quase sempre o pobre e, só algumas vezes, a classe média, mas nunca o rico. O povo é aquele que se deixa enganar, aquele que troca seu voto por óculos, churrasco, por algum cargo, ou algum outro bem imediatista. O povo é todo mundo, o povo é ninguém. Eu não sou o povo, nem sou do povo, imagino que você também não seja o povo e nem do povo, ninguém é. O povo é sempre o outro, os outros, mas nunca, nunquinha, a gente. E isso não acontece só no campo da política, em tudo o mais é assim: o povo é que escuta música ruim, o povo é que assiste novela, o povo é que não lê, o povo é que não se informa. O povo, sempre o povo!
Se eu não sou o povo, se vocês leitores não são o povo, se seus amigos próximos não são o povo, se o povo é sempre o outro que se encontra distante de mim socialmente, culturalmente, quem é, então, o povo? Se aqueles que pensamos ser o povo não se pensam como povo e, ainda por cima, também colocam a culpa no povo, pois eles também não são o povo, quem é o povo? Me digam, por favor, quem é o povo? Quero apontar para ele e dizer: a culpa é sua. Só espero, quando nos encontrarmos, não ouvir dele as seguintes questões: i) o que fazer quando só é possível escolher entre variações da mesma tonalidade? ii) Será que escolho verdadeiramente ou só faço parte de um jogo no qual finjo escolher? iii) O que fazer? Diante dessas questões eu só poderia responder: apareça Povo, apareça cada vez mais. Entre nos espaços mesmo sem ser convidado e, em alto e bom tom, diga o seu nome.

Dulce Veiga está desaparecida, ajudem a encontrá-la!


SÁBADO, 15 DE MAIO DE 2010


Caio Fernando Abreu, entre os anos 85 e 90, se dedicou à escrita de “Onde andará Dulce Veiga/?”. Essa foi sua segunda incursão pelo gênero do romance. Diferentemente do seu primeiro romance, Limite Branco, não há em Dulce Veiga um Caio tão angustiado (chamo atenção para o "tão"). Há um Caio maduro, que procura responder questões existenciais. À diferença dos textos anteriores, nesse último, há uma resposta.

A busca por Dulce Veiga, que à primeira vista parece nos colocar diante de um romance policial, classificação sugerida pelo próprio autor em uma de suas cartas, não é uma investigação policial cujo objeto seria Dulce Veiga. O objeto dessa investigação é a própria personagem principal do livro, o narrador. O que se busca é um sentindo para existência: conseguir colocar a gota de mercúrio no centro da caixinha "tinha se tornado uma questão de vida ou morte (...). De vida ou morte era exagero, mas de sanidade ou de loucura, não" (p.202). Busca-se uma existência similar a da gota que consegue "chegar ao centro, sem partir-se em mil fragmentos pelo caminho. Completo, total. Sem deixar pedaço algum para trás” (Idem, ibidem).

Como chegar ao centro sem se partir em mil fragmentos pelo caminho? Essa parece ser uma das questões centrais postas pelo texto, cuja resposta parece ser indicada quando o narrador encontra Saul, o qual, tal como aquele que pediu um beijo a Arandi, pede um beijo ao narrador. Beijar Saul implica a aceitação daquilo que lhe causa repulsa, implica o abandono do que é imposto culturalmente. Abandonar tudo isso é necessário para chegar inteiro ao fim do caminho, "é preciso ser capaz de amar meu nojo mais profundo para que ele me mostre o caminho onde eu serei inteiramente eu" (p.212). Aceitar o nojo é se aceitar completamente: é aceitar ser aquilo que se é.

Ao aceitar o próprio nojo e ao enfrentá-lo o narrador-personagem aceita a vida com todas as suas contradições. Ele que se mostra o tempo todo cético diante dos búzios de sua vizinha e da astrologia de Patrícia, acaba por aceitar o mistério. Tal aceitação, não se dá do nada, sempre esteve presente, mas de uma maneira incompleta, numa relação de luta com um modo “racional-realista” de ver o mundo.

O encontro com Dulce é o encontro com o “real-místico”. A cantora que desistiu de tudo para buscar "outra coisa" virou cantora de churrascaria. O que poderia ser visto com tristeza, pela perda de status, não o é. Dulce é pobre, mas encontrou o algo mais que não encontraria num mundo essencialmente urbano. Ao que parece, não só não podemos encontrar o místico e com ele a felicidade no mundo urbano, como este último constitui impedimento para que se alcancem tais coisas: o algo além. Somente no mundo de Dulce Veiga é possível encontrar outra coisa, algo além, e é isso que o narrador descobre ao encontrar Dulce. O algo além é a própria vida em sua simplicidade encarada a partir de sua faceta mística e inexplicável.

No entanto, mesmo tendo encontrado Dulce Veiga a personagem central não permanece com ela, volta para sua vida urbana. Volta que não se dá sem que uma modificação tenha sido operada e sem que parte do que não pode ser encontrado no mundo urbano seja levado para este mesmo, afinal Cazuza (O gato) vai junto para São Paulo. O livro, por estes e outros motivos, busca uma espécie de equilíbrio entre o místico e o racional. É nesse equilíbrio que encontramos um sentindo a nos mostrar como podemos chegar ao fim do caminho sem nos fragmentarmos completamente. Fragmentos há, prova disso é que, afinal, Pedro nunca mais volta e a vida não é tão simples como a caixinha de mercúrio. Caio come chocolate, se suja com ele, sem nunca deixar de pensar enquanto tira a folha que é de estanho, eis à resposta.




quarta-feira, 18 de abril de 2012

Por que o Planet Hemp deveria se esfregar num pé de urtigas?[i]




Somente uma razão entorpecida pode crer que a criminalização das condutas de produtores, distribuidores e consumidores de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas, artificialmente selecionadas para serem objeto da proibição, sirva para deter uma busca de meios de alteração do psiquismo, que deita raízes na própria história da humanidade (Maria Lúcia Karam, jurista. http://coletivodar.org/about-2/).


A afirmação de que a canabis (também conhecida como jamba, marijuana, Santa Maria) é uma erva natural e não pode te prejudicar fica bonita somente na música. Essa afirmação é o resultado desesperado da afirmação oposta e também desesperada. Qual é a afirmação oposta e desesperada? Aquela que apresenta a maconha como fonte de todo mal. Ambas as posições são equivocadas porque maniqueístas. Erva do bem ou do mal? Essa lógica binária não dá conta da problemática posta pela “erva diabo”. Entretanto, é mais compreensível que a posição de que se trata de uma erva com propriedades maléficas seja sustentada, pois há todo um discurso midiático sustentando essa imagem e como a maioria das pessoas reproduz a “douta ignorância” dos meios de comunicação de massa (inclusive dentro dos meios acadêmicos, sobretudo, no que se refere às drogas e a sua utilização) torna-se compreensível que sustentem tal pensamento. Mas não acho compreensível que aqueles que defendam a legalização da "erva" sustentem um discurso tão frágil como esse de que se trata de uma erva natural e que, por esse motivo, ela não pode ser prejudicial. A estes é preciso, assumindo uma posição de um mestre estóico, sugerir que se esfreguem num pé de urtigas.
Uma coisa pode ser boa e ruim (num sentido estatístico, se é que estatística tem sentido!), ou seja, pode apresentar aspectos positivos e negativos. Neste caso, basta que se vejam os prós e os contras e que se decida o que é mais útil de um ponto de vista social, sem esquecer, no entanto, que a definição do que será visto como útil deve passar por um exame atento para que as consequências sejam extraídas corretamente. Acrescente-se a isso que uma coisa pode ser agradável a um, desagradável a outro e indiferente a um terceiro, ou seja, sua qualificação como boa o ruim será sempre relacional como no caso do gosto musical: uma música, como nos disse Espinosa, pode ser agradável a um, desagradável a outro e indiferente a um surdo. Neste último sentido, respeitam-se às diferenças entre as pessoas em suas relações com as coisas, esta, talvez, seria a discussão mais interessante a ser feita, mas quase impossível no atual contexto onde reinam estratégias de saber/poder que produzem sistematicamente ignorâncias em torno das drogas[ii].
“São apenas duas questões. Está claro que não se sabe o que fazer com a droga (mesmo com os drogados), porém não se sabe melhor como falar dela” (DELEUZE. Duas questões). É preciso construirmos uma nova gramática das drogas que fuja tanto ao senso comum quanto ao bom senso. A urtiga, como todxs sabem, é uma planta que causa forte ardência quando entra em contato com a pele numa certa relação (reza a lenda de que se não respirarmos enquanto a colhemos não seremos acometidos da forte ardência comumente provocada por ela), porém ela também é utilizada no preparo de saladas, sopas, em velas. O poeta Thomas Campbel, a respeito da urtiga, disse: "na Escócia, comi urtigas, dormi em lençóis de urtigas, e janetei sobre um toalha de urtigas”( http://www.dulcerodrigues.info/plantas/pt/ortiga_pt.html). Ou seja, a maléfica urtiga também tem lá suas qualidades!  O mesmo se passa com a Cannabis, seja ela sativa, indica ou ruderalis, mas as pessoas não querem ver. Ou elencam suas virtudes como se não trouxesse nenhum malefício, ou apontam apenas para os malefícios e esquecem de suas virtudes[iii].
Não se trata de ser a favor ou contra as drogas. O “contra ou a favor” é redutor. Porém, se se trata de exigir a legalização de alguma coisa no atual estado das coisas é preciso assumir, mesmo que temporariamente a lógica do Estado, que é a do contra ou a favor, mas que o “contra ou a favor” seja o resultado de uma reflexão, isso deve ser exigido sempre. Outra coisa que se deve exigir é que a discussão nunca gire em torno de “você é a favor ou contra a maconha?”, discussões que tomam essa questão como ponto de partida me parecem infrutíferas. Afinal, não se trata de se posicionar em relação à maconha, a posição que se deve tomar é em relação a sua legalização de modo que o horizonte a partir do qual devemos nos interrogar deve nos permitir assumir uma posição favorável ou contrária a LEGALIZAÇÃO da maconha. Por esse motivo, resolvi apresentar alguns argumentos favoráveis a legalização. Furto-me de oferecer os argumentos contrários, pois os meus são a radicalização do fundamento que os sustentam. Me explico: todos os argumentos contrários a legalização da maconha, em última instância, recorrem a ideia de preservação da vida como fundamento da criminalização da planta em questão, no que se segue procuro mostrar que a legalização, e não sua marginalização, é compatível com a vida. Importa observar, mais umas vez,  que não estou dizendo que a maconha é compatível com a vida, afirmo que A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA É COMPATÍVEL COM A DEFESA DA VIDA. Não se trata de uma apologia ao uso da maconha, trata-se sim de uma APOLOGIA À LEGALIZAÇÃO DA MACONHA, isso, até onde sei, não é crime. Passemos às perguntas freqüentes:

Se legalizarmos a maconha estaremos estimulando o consumo?
A legalização da maconha deve ser entendida como regulação sobre sua produção, comércio e uso. Legalizar não equivale, portanto, a permitir que a maconha seja  objeto de propagandas publicitárias. Muitas das pessoas que lutam por sua legalização são contrárias à exploração propagandística da cannabis. Legalizar é impor regras ao consumo: idade, quantidade, etc.

A legalização da maconha causaria um problema de saúde pública?
Caso a nossa preocupação legitima seja com aquelas pessoas que fazem uso da cannabis e com os cofres do Estado, a legalização é a melhor saída. (a) A ilegalidade contribui para prejudicar a saúde das pessoas que utilizam a erva, pois as mesmas não têm controle de qualidade do produto que estão a utilizar. Se a ideia é preservar a saúde dos usuários precisamos da presença do Estado para garantir que os únicos riscos serão aqueles causados pelo consumo da maconha e não dos aditivos que a ela são acrescentados; (b) a legalização permitiria  o acesso a informações eficazes e não moralistas, sou dos que acreditam que a informação verdadeira (o conhecimento) é sempre saudável: com informações sobre os riscos, benefícios, prazeres e desprazeres as pessoas que vierem a fazer uso da droga estarão mais conscientes de suas escolhas e saberão reduzir os danos e amplificar os benefícios (lembremos que os estudos sobre a maconha são inviabilizados por conta da atual política de drogas assumida pelo Estado); (c) a legalização permitiria a geração de impostos que cobririam os eventuais gastos com a saúde dxs usuárixs, além de contribuir para diminuir os enormes valores gastos pelo Estado nessa política de combate ao uso das drogas, no final das contas o Estado teria uma diminuição dos seus gastos.

Legalizar a maconha é legalizar a porta de entrada para outras drogas?
Em primeiro lugar, a ideia de que a maconha é porta de entrada para outras drogas não pode ser aceita sem que se atente para a atual política proibicionista e, por conseqüência, burra. A maconha muitas vezes acaba funcionando como porta de entrada para outras drogas não porque seria a desencadeadora do vício, mas porque é proibida: (a) a proibição é responsável por uma série de desinformações sobre o uso da cannabis, somos bombardeados com propagandas retrógradas que trabalham com a ideia de que se alguém der uma tragada logo sairá assaltando e matando pessoas por aí; quando alguém faz uso da cannabis e percebe que as coisas não se passam do modo como querem que pensemos o raciocínio que se segue é o seguinte: se a maconha não é o bicho que falavam, as outras drogas também não devem ser. Defender a legalização é também defender que informações não preconceituosas sejam veiculadas e que as pessoas que venham a utilizá-la não acabem desenvolvendo o argumento falacioso apresenta acima (se a maconha não é tão mal assim, a cocaína, a pasta base também devem não ser). Legalizar a maconha equivale a diminuir as possibilidades de que ela funcione como porta de entrada para outras drogas. (b) Muitas pessoas passam a utilizar outras drogas porque, devido à proibição, acabam não conseguindo encontrar maconha e compram o que o traficante dispõe no momento. Legalizar a maconha equivale a regulamentar seus pontos de produção e venda (e mesmo o modo como ela será comercializada). A legalização garantiria o acesso dxs usuárixs e também que a pessoa (ou cooperativa) que a comercializa-se não pudesse comercializar outras drogas, isso diminuiria a passagem a outras drogas. Legalizar a maconha não equivale a abrir uma porta de acesso a outras drogas. A legalização deve ser entendida como o estreitamento controlado dessas porta que está aberta por conta de sua marginalização.

Da legalização resultaria a permissividade de uso pelas crianças?
Muitas crianças e adolescentes já fazem uso da cannabis e, por estarem à margem da legalidade, acabam sendo expostas a todos os riscos acima apresentados. A legalização permitira, como já apontado, a disseminação de informações objetivas, diminuiria os riscos e acabaria com o uso da maconha como porta de acesso a outras drogas. Tudo isso contribuiria para a construção de espaços em que crianças e adolescentes poderiam buscar informações precisas e compartilhar seus problemas conjuntamente e sem moralismos. Além disso, uma vez que o consumo de drogas é proibido a menores de idade, a legalização diminuiria o tráfico e isso diminuiria o poder de ação dos traficantes, pois estes perderiam boa parte de sua fonte de renda, disso poderia resultar a diminuição de sua influência e a capacidade de disseminar suas drogas entre crianças e adolescentes.

A legalização da maconha aumentaria a criminalidade?
A legalização da maconha diminuiria a criminalidade e os gatos financeiros que o Estado tem com o combate às drogas. A criminalidade não é decorrência da utilização da cannabis, mas de sua proibição geradora de todo um movimento que opera na ilegalidade e contribui para a corrupção das pessoas. É preciso observar que, além da criminalidade ser gerada pela proibição, há uma falsa ideia que procura associar as pessoas que fazem uso da cannabis a criminosos, para constatar isso basta que se abra qualquer jornaleco e se lerá uma série de matérias criminais que associam os crimes ao uso de drogas. Não pretendo dizer que os jornais estão mentindo (embora, de fato, eu pense que seja assim na maioria das vezes), argumento que transformam a exceção em regra. Dentro do universo de pessoas que utilizam cannabis somente uma minoria realmente comete atos criminosos, fico pensando como seria viver em uma sociedade em que não houvesse tanta hipocrisia em torno do uso da cannabis e as pessoas se sentissem a vontade para falar publicamente que fazem uso dela. Talvez o panorama seria bem diferente: ao invés de lermos somente “se drogou e assaltou”, leríamos coisas como “usou maconha e compôs uma linda canção” (http://www.youtube.com/watch?v=Q9zmXJgjE_Y), um bom exemplo aqui é a música Refazenda de Gilberto Gil (http://www.youtube.com/watch?v=uT21kqCoQro), ou ainda, “usou maconha e foi doar brinquedos a crianças carentes”. Não estou sustentando que as pessoas que fazem uso de cannabis são exemplos, mas que elas são como todas as outras pessoas (violentas, calmas, generosas, agressivas) e que quando se toma essas pessoas por criminosos se comete um injustiça por meio de uma generalização apressada.

Pelos motivos expostos (e por outros não expostos aqui) que eu, Cleiton Zóia Münchow, apoio a marchas da maconha que acontecerá no mês de maio em Campo Grande.Lutar pela legalização da maconha é lutar pelo direito a autonomia, pela melhor aplicação das verbas públicas, pela realização dos ideias democráticos que norteiam nosso Estado. Está mais do que na hora de começarmos um debate sincero sobre autonomia, drogas e legalização. Eu vou, quem vai?

Para curtir o som do Plant Hemp clique aqui: http://www.youtube.com/watch?v=YHD9E2kI4l4

Para informações não preconceituosas sobre drogas clique aqui:http://coletivodar.org/

Para informações sobre a Marcha da Maconha que acontecerá em Campo Grande: https://www.facebook.com/groups/138733409589502/




[i] Particularmente não desejo que o Planet Hemp se esfregue num pé de urtigas, minha intenção foi apenas a de utilizar uma estratégia para chamar a atenção de possíveis leitores e leitoras que fazem uso da sentença que aparece na música deles sem refletir sobre a superficialidade dela.
[ii] "- Enquanto fonte de prazer. Devemos estudar as drogas. Devemos experimentar as drogas. Devemos fabricas boas drogas - capazes de produzir um prazer muito intenso. O puritanismo, que coloca o problema das drogas - um puritanismo que implica o que se deve estar contra ou a favor - é uma atitude errônea. As drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma forma que há boa música e má música, há boas e más drogas. E então, da mesma forma que não podemos dizer somos "contra" a música, não podemos dizer que somos "contra" as drogas". (FOUCAULT. http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/sexo.pdf )

[iii] Uso a palavra virtude no sentido maquiaveliano do termo: a força do príncipe para dominar a fortuna.

sábado, 14 de abril de 2012

Querem que acreditemos que o cérebro da mulher coxinense é a vagina

       Como é ser mulher na cidade de Coxim? Para respondermos essa questão é preciso primeiramente saber o que é ser mulher. Seria um porta-vagina? Ou ser mulher é mais que ter um órgão reprodutor feminino?
           Tanto homens quanto mulheres veem a “mulher ideal” como aquela que tem um corpo físico legal, que se comporta como dizem que uma mulher deve se comportar, e que além de tudo, seja feminina. Então, vamos tentar definir o que foi dito. Ter um corpo legal significa ter peito e bunda? Uma mulher deve se comportar como santa?  Só se é mulher quando se está em cima de um salto, ou com o rosto maquiado? E por último, as que não se encaixam no padrão de “mulher ideal” são o quê? 
          Em pleno século XXI não estamos completamente livres de presenciar atos e discursos machistas contra as mulheres. Algumas vezes essas atitudes podem parecer normais e inofensivas, pois a sociedade está acostumada com o discurso de que a mulher é inferior ao homem.  Provas disso são os dados divulgados pela Delegacia de Atendimento a Mulher (DAM) que revelam o aumento da violência contra a mulher no município de Coxim. Conforme a DAM, em 2011 foram registradas 233 delitos de violência doméstica, sendo 37 ocorrências no mês de janeiro e fevereiro, enquanto esse ano só nos dois primeiros meses foi registrado 74 ocorrências, o dobro.
            De modo geral, a mulher brasileira é vista como promíscua, dotada de muita bunda e peito... O que parece ser essencial para alguém que tem como propósito ser objeto sexual. Agora se diminuíssemos o conceito geral de mulher para a mesma que vive numa cidade do interior do Mato Grosso do Sul, conseguiríamos perceber o aumento do que chamamos de sexismo, justamente pela grande concentração de homens e mulheres machistas em um pequeno espaço.
Aqui as mulheres são definidas, mais ou menos assim: Se você não se casa, é incompleta, portanto infeliz. Se você namora muito, é vagabunda. Caso se separe, é porque era péssima esposa. Se um filho se desvirtua, a mãe não soube educar. Se dirigir um carro, é barbeira. Se dirigir um caminhão é “sapatão”. Se for lésbica, é falta de homem, e por aí vai...
De nenhum modo a mulher é bem vista, a não ser que possua uma família (marido e filhos).
            Logo é necessário que homens e mulheres se conscientizem do mal que o machismo pode causar principalmente se introduzido na nossa cultura. Pois desse modo, iremos repassar de geração em geração o pensamento de que a mulher só se torna “mulher de verdade” quando arranja um homem. E apesar de termos pessoas que lutam pela igualdade dos gêneros, tanto no Brasil quanto na nossa cidade, é imprescindível a ajuda de todas as mulheres lutando por um único objetivo – o de derrubar de vez o sexismo – e assim construirmos uma sociedade igualitária.


 (Texto de Regiane Arruda, estudante do primeiro ano do Curso Técnico em Informática do IFMS-Coxim)



sexta-feira, 13 de abril de 2012

Marcha das vadias: uma política para as Raras




No dia 10 de março, às 9h da manhã na Praça Rádio Clube em Campo Grande, aconteceu a primeira MARCHA DAS VADIAS aqui do estado do Mato Grosso do Sul. O que aconteceu lá? O acontecimento da diferença. E quando uso a palavra diferença tenho em mente o sentido deleuziano do termo: a diferença é definida como objeto de afirmação em que a diferença afirma-se a si mesma como diferença. “Em sua essência, a afirmação é ela própria diferença” (DELEUZE. P89).
Não se trata mais de celebrar a diversidade[i], não, não é para essa direção que a ponta A MARCHA DAS VADIAS. A marcha está ligada a todo um movimento filosófico que encontra nomes como Deleuze, Foucault, Guattari, Derrida como amigos de conversação, mas encontra também uma série de outros tantos anormais que na década de 70 começaram a se reunir com o propósito de se afirmarem coletivamente não mais em relação à crença na partilha de uma identidade natural, mas em relação aos processos de subjetivação. Processos de construção de identidades. Tais autores e movimentos nos retiraram do campo estático da diversidade e nos apresentaram a vertigem da diferença.
As lésbicas nos mostraram que o feminismo dizia mulher heterossexual quando falava em mulher. As negras denunciaram que quando se falava em mulher pensava-se em mulher branca. As transexuais e os transexuais nos ensinaram que quando as feministas falavam em mulher pensavam em algo com útero e vagina. Até que se passou a questionar a categoria de mulher como categoria política. Na bandeira daquelas que ousaram se perguntar “afinal, o que é mulher?”encontrava-se a famosa afirmação de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”.  Essa frase foi repetida a exaustão por aquelas que podemos chamar de pós-feministas. De Wittig a Butler não se parou de investigar os processos sexopolítocos pelos quais alguém se torna mulher. Muitos outros passaram a afirmar que do mesmo modo como não se nasce mulher, também não se nasce heterossexual, homossexual e, dentre todas essas afirmações a mais surpreendente: não se nasce criança[ii].
Revelou-se o irrefletido que se encontrava na ideia de natureza e com Brechet, mas de modo mais radical que ele, começaram a afirmar: “nunca diga isto é natural”. Na natureza as mulheres, as raças, todas as dissidentes sexuais foram aprisionadas. Foi preciso que as técnicas de construção do natural fossem colocadas em evidência para que se percebesse uma zona política até então insondável: o processo de produção das identidades. A composição dos movimentos sociais abandonou a ideia de natureza como fundo organizador e tomou como ponto de partida da organização política a ideia de afinidade, por perceber que as categorias  utilizadas para se pensar o que era entendido como sujeito político eram o resultado de um tipo de produção social em que reinava o heterossexulismo compulsório, a branquitude como valor máximo de higiene e beleza, a dominação masculina que se apresentava na forma de pensamento heterossexual e violência física.
Neste sentido, os movimentos que antes lutavam pelos direitos passaram a se questionar a respeito das próprias categorias que constituíam sua luta. Descobriram que era preciso passar um pente fino nas ciências e nos discursos a partir de uma análise que não mais assumisse uma posição ingênua a respeito de marcadores da diferença tais como gênero, raça e sexualidade. Neste processo de investigação perceberam que muitas das pautas de luta deveriam ser revistas, pois traziam consigo uma série de prejuízos na medida em que assumiam para si a gramática (conjunto de práticas) daqueles que acusavam de opressores. O movimento de mulheres que antes lutava por igualdade de direitos entre homens e mulheres percebeu que essa busca por igualdade estava num campo dominado por uma série de pressupostos masculinistas e que não se tratava mais de buscar uma espécie de equiparação, tratava-se, sim, de construir uma política da diferença e, junto com ela, uma nova gramática que fizesse frente aos processos de produção de subjetividade vigentes. Não se tratava mais de buscar tolerância e aceitação como se nos estivessem concedendo do alto de sua bondade um espaço para o diferente. Não se tratava mais de se pensar como um cão tolerado pela gerência. As lutas passaram a se dar em torno dos processos de produção de verdade e das identidades.
Há, ainda hoje, uma boa parcela daquilo que se chama de movimento LGBT que  luta por aceitação utilizando-se assim da própria gramática que a transforma em objeto de exclusão. Nesta perspectiva se procura afirmar a tolerância como valor máximo da política, se pede o reconhecimento de que “os homossexuais são tão bons quanto os heterossexuais”. “Olhem somos como vocês”, exclama uma parcela do movimento LGBT. A Marcha das vadias parte de outra perspectiva: não somos nós que somos iguais a vocês, mas são vocês que são iguais a nós. Iguais em que sentido? Iguais na diferença. A igualdade representativa passa então a ser denunciada como falseamento da diferença. A diferença não pode ser representada, toda representação da diferença será sempre um decalque produzido por meio de relações políticas redutoras da diferença. 
O que é ser vadia? Ser vadia é se defrontar com as normas de gênero e com um riso no rosto afirmar o abjeto como valor. A ideia é mostrar que é possível ser diferente e que isso não é um problema. Afirmar-se vadia equivale a desarmar aqueles que pretendem utilizar essa palavra como arma para violentar pessoas. Afirmar-se vadia é romper com muitos dos estigmas que trazemos em nossas costas que suportam o peso de uma moral do sofrimento. Afirmar-se vadia equivale a fazer suas as palavras da Balada do Louco: "eu juro que é melhor não ser o normal se eu posso pensar que Deus sou eu e bruuuuu" (http://www.youtube.com/watch?v=6yBI7y6-9fQ). Mas, além de tudo isso, porque as vadias operam na lógica do anti-édipo em que o "e" é levado ao infinito ser vadia é também saber-se uma invenção, uma ficção. 
Nós da Casa da Diferença estivemos  na Marcha das Vadias, pois entendemos que nossa existência não precisa ser pensada como uma regra. Procuramos pensar nossa existência como arte: espaço de criação de sentidos que operam transformações nas regras ao ponto de leva-las ao paradoxo. É por saber que os sentidos proliferam para todos os lados que a Marcha da Vadias tem como reivindicação a autodeterminação dos sentidos de si. Importa observar que esse si é sempre um conjunto de nós. Não se trata de um  movimento de mulheres, tampouco movimento LGBT,  movimento negro, movimento de trabalhadorxs ou de prostitutas. A marcha das vadias é movimento  dxs que utilizam essas identidades com finalidades políticas e que sabem que essas identidades também são fruto de políticas. A Marcha das vadias é para todxs e para ninguém, por isso nela se faz a política das raras e para as raras. 

BIBLIOGRAFIA:

DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
PRECIADO, B.  Terror anal. in: HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homossexual.Editorial     
Melusina S.L., 2009
TOMAZ, T. Identidade e diferença- a perspectiva dos estudos culturais.Petrópolis: Vozes, 2000.


[i] “Em geral, o “multiculturalismo” apoia-se  em um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença. É particularamente problemática, nessa perspectiva, a ideia de diversidade. Parece difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada  é a de respeito e tolerância para com a diversidade e a diferença. Mas será que as questões da identidade e da diferença se esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo: essa perspectiva é suficiente para servir de base para uma pedagogia questionadora? Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade e da diferença?” (SILVA, T. T. p 73-74).
[ii] “Se Beauvoir afirmou que não se nasce, ainda mais radicalmente poderíamos dizer que com Schérer “não se nasce criança”. Para Schérer, Guy Hocquenghe,  e os ativistas da FHAR, o sistema educativo é o dispostivo específico que produz a criança, através de uma operação política singular: a des-sexualização do corpo infantil e a desqualificação dos seus afetos” (PRECIADO. Terror anal. P.165)