Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Marcha das vadias: uma política para as Raras




No dia 10 de março, às 9h da manhã na Praça Rádio Clube em Campo Grande, aconteceu a primeira MARCHA DAS VADIAS aqui do estado do Mato Grosso do Sul. O que aconteceu lá? O acontecimento da diferença. E quando uso a palavra diferença tenho em mente o sentido deleuziano do termo: a diferença é definida como objeto de afirmação em que a diferença afirma-se a si mesma como diferença. “Em sua essência, a afirmação é ela própria diferença” (DELEUZE. P89).
Não se trata mais de celebrar a diversidade[i], não, não é para essa direção que a ponta A MARCHA DAS VADIAS. A marcha está ligada a todo um movimento filosófico que encontra nomes como Deleuze, Foucault, Guattari, Derrida como amigos de conversação, mas encontra também uma série de outros tantos anormais que na década de 70 começaram a se reunir com o propósito de se afirmarem coletivamente não mais em relação à crença na partilha de uma identidade natural, mas em relação aos processos de subjetivação. Processos de construção de identidades. Tais autores e movimentos nos retiraram do campo estático da diversidade e nos apresentaram a vertigem da diferença.
As lésbicas nos mostraram que o feminismo dizia mulher heterossexual quando falava em mulher. As negras denunciaram que quando se falava em mulher pensava-se em mulher branca. As transexuais e os transexuais nos ensinaram que quando as feministas falavam em mulher pensavam em algo com útero e vagina. Até que se passou a questionar a categoria de mulher como categoria política. Na bandeira daquelas que ousaram se perguntar “afinal, o que é mulher?”encontrava-se a famosa afirmação de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”.  Essa frase foi repetida a exaustão por aquelas que podemos chamar de pós-feministas. De Wittig a Butler não se parou de investigar os processos sexopolítocos pelos quais alguém se torna mulher. Muitos outros passaram a afirmar que do mesmo modo como não se nasce mulher, também não se nasce heterossexual, homossexual e, dentre todas essas afirmações a mais surpreendente: não se nasce criança[ii].
Revelou-se o irrefletido que se encontrava na ideia de natureza e com Brechet, mas de modo mais radical que ele, começaram a afirmar: “nunca diga isto é natural”. Na natureza as mulheres, as raças, todas as dissidentes sexuais foram aprisionadas. Foi preciso que as técnicas de construção do natural fossem colocadas em evidência para que se percebesse uma zona política até então insondável: o processo de produção das identidades. A composição dos movimentos sociais abandonou a ideia de natureza como fundo organizador e tomou como ponto de partida da organização política a ideia de afinidade, por perceber que as categorias  utilizadas para se pensar o que era entendido como sujeito político eram o resultado de um tipo de produção social em que reinava o heterossexulismo compulsório, a branquitude como valor máximo de higiene e beleza, a dominação masculina que se apresentava na forma de pensamento heterossexual e violência física.
Neste sentido, os movimentos que antes lutavam pelos direitos passaram a se questionar a respeito das próprias categorias que constituíam sua luta. Descobriram que era preciso passar um pente fino nas ciências e nos discursos a partir de uma análise que não mais assumisse uma posição ingênua a respeito de marcadores da diferença tais como gênero, raça e sexualidade. Neste processo de investigação perceberam que muitas das pautas de luta deveriam ser revistas, pois traziam consigo uma série de prejuízos na medida em que assumiam para si a gramática (conjunto de práticas) daqueles que acusavam de opressores. O movimento de mulheres que antes lutava por igualdade de direitos entre homens e mulheres percebeu que essa busca por igualdade estava num campo dominado por uma série de pressupostos masculinistas e que não se tratava mais de buscar uma espécie de equiparação, tratava-se, sim, de construir uma política da diferença e, junto com ela, uma nova gramática que fizesse frente aos processos de produção de subjetividade vigentes. Não se tratava mais de buscar tolerância e aceitação como se nos estivessem concedendo do alto de sua bondade um espaço para o diferente. Não se tratava mais de se pensar como um cão tolerado pela gerência. As lutas passaram a se dar em torno dos processos de produção de verdade e das identidades.
Há, ainda hoje, uma boa parcela daquilo que se chama de movimento LGBT que  luta por aceitação utilizando-se assim da própria gramática que a transforma em objeto de exclusão. Nesta perspectiva se procura afirmar a tolerância como valor máximo da política, se pede o reconhecimento de que “os homossexuais são tão bons quanto os heterossexuais”. “Olhem somos como vocês”, exclama uma parcela do movimento LGBT. A Marcha das vadias parte de outra perspectiva: não somos nós que somos iguais a vocês, mas são vocês que são iguais a nós. Iguais em que sentido? Iguais na diferença. A igualdade representativa passa então a ser denunciada como falseamento da diferença. A diferença não pode ser representada, toda representação da diferença será sempre um decalque produzido por meio de relações políticas redutoras da diferença. 
O que é ser vadia? Ser vadia é se defrontar com as normas de gênero e com um riso no rosto afirmar o abjeto como valor. A ideia é mostrar que é possível ser diferente e que isso não é um problema. Afirmar-se vadia equivale a desarmar aqueles que pretendem utilizar essa palavra como arma para violentar pessoas. Afirmar-se vadia é romper com muitos dos estigmas que trazemos em nossas costas que suportam o peso de uma moral do sofrimento. Afirmar-se vadia equivale a fazer suas as palavras da Balada do Louco: "eu juro que é melhor não ser o normal se eu posso pensar que Deus sou eu e bruuuuu" (http://www.youtube.com/watch?v=6yBI7y6-9fQ). Mas, além de tudo isso, porque as vadias operam na lógica do anti-édipo em que o "e" é levado ao infinito ser vadia é também saber-se uma invenção, uma ficção. 
Nós da Casa da Diferença estivemos  na Marcha das Vadias, pois entendemos que nossa existência não precisa ser pensada como uma regra. Procuramos pensar nossa existência como arte: espaço de criação de sentidos que operam transformações nas regras ao ponto de leva-las ao paradoxo. É por saber que os sentidos proliferam para todos os lados que a Marcha da Vadias tem como reivindicação a autodeterminação dos sentidos de si. Importa observar que esse si é sempre um conjunto de nós. Não se trata de um  movimento de mulheres, tampouco movimento LGBT,  movimento negro, movimento de trabalhadorxs ou de prostitutas. A marcha das vadias é movimento  dxs que utilizam essas identidades com finalidades políticas e que sabem que essas identidades também são fruto de políticas. A Marcha das vadias é para todxs e para ninguém, por isso nela se faz a política das raras e para as raras. 

BIBLIOGRAFIA:

DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
PRECIADO, B.  Terror anal. in: HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homossexual.Editorial     
Melusina S.L., 2009
TOMAZ, T. Identidade e diferença- a perspectiva dos estudos culturais.Petrópolis: Vozes, 2000.


[i] “Em geral, o “multiculturalismo” apoia-se  em um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença. É particularamente problemática, nessa perspectiva, a ideia de diversidade. Parece difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada  é a de respeito e tolerância para com a diversidade e a diferença. Mas será que as questões da identidade e da diferença se esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo: essa perspectiva é suficiente para servir de base para uma pedagogia questionadora? Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade e da diferença?” (SILVA, T. T. p 73-74).
[ii] “Se Beauvoir afirmou que não se nasce, ainda mais radicalmente poderíamos dizer que com Schérer “não se nasce criança”. Para Schérer, Guy Hocquenghe,  e os ativistas da FHAR, o sistema educativo é o dispostivo específico que produz a criança, através de uma operação política singular: a des-sexualização do corpo infantil e a desqualificação dos seus afetos” (PRECIADO. Terror anal. P.165)

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