Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Por que o Planet Hemp deveria se esfregar num pé de urtigas?[i]




Somente uma razão entorpecida pode crer que a criminalização das condutas de produtores, distribuidores e consumidores de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas, artificialmente selecionadas para serem objeto da proibição, sirva para deter uma busca de meios de alteração do psiquismo, que deita raízes na própria história da humanidade (Maria Lúcia Karam, jurista. http://coletivodar.org/about-2/).


A afirmação de que a canabis (também conhecida como jamba, marijuana, Santa Maria) é uma erva natural e não pode te prejudicar fica bonita somente na música. Essa afirmação é o resultado desesperado da afirmação oposta e também desesperada. Qual é a afirmação oposta e desesperada? Aquela que apresenta a maconha como fonte de todo mal. Ambas as posições são equivocadas porque maniqueístas. Erva do bem ou do mal? Essa lógica binária não dá conta da problemática posta pela “erva diabo”. Entretanto, é mais compreensível que a posição de que se trata de uma erva com propriedades maléficas seja sustentada, pois há todo um discurso midiático sustentando essa imagem e como a maioria das pessoas reproduz a “douta ignorância” dos meios de comunicação de massa (inclusive dentro dos meios acadêmicos, sobretudo, no que se refere às drogas e a sua utilização) torna-se compreensível que sustentem tal pensamento. Mas não acho compreensível que aqueles que defendam a legalização da "erva" sustentem um discurso tão frágil como esse de que se trata de uma erva natural e que, por esse motivo, ela não pode ser prejudicial. A estes é preciso, assumindo uma posição de um mestre estóico, sugerir que se esfreguem num pé de urtigas.
Uma coisa pode ser boa e ruim (num sentido estatístico, se é que estatística tem sentido!), ou seja, pode apresentar aspectos positivos e negativos. Neste caso, basta que se vejam os prós e os contras e que se decida o que é mais útil de um ponto de vista social, sem esquecer, no entanto, que a definição do que será visto como útil deve passar por um exame atento para que as consequências sejam extraídas corretamente. Acrescente-se a isso que uma coisa pode ser agradável a um, desagradável a outro e indiferente a um terceiro, ou seja, sua qualificação como boa o ruim será sempre relacional como no caso do gosto musical: uma música, como nos disse Espinosa, pode ser agradável a um, desagradável a outro e indiferente a um surdo. Neste último sentido, respeitam-se às diferenças entre as pessoas em suas relações com as coisas, esta, talvez, seria a discussão mais interessante a ser feita, mas quase impossível no atual contexto onde reinam estratégias de saber/poder que produzem sistematicamente ignorâncias em torno das drogas[ii].
“São apenas duas questões. Está claro que não se sabe o que fazer com a droga (mesmo com os drogados), porém não se sabe melhor como falar dela” (DELEUZE. Duas questões). É preciso construirmos uma nova gramática das drogas que fuja tanto ao senso comum quanto ao bom senso. A urtiga, como todxs sabem, é uma planta que causa forte ardência quando entra em contato com a pele numa certa relação (reza a lenda de que se não respirarmos enquanto a colhemos não seremos acometidos da forte ardência comumente provocada por ela), porém ela também é utilizada no preparo de saladas, sopas, em velas. O poeta Thomas Campbel, a respeito da urtiga, disse: "na Escócia, comi urtigas, dormi em lençóis de urtigas, e janetei sobre um toalha de urtigas”( http://www.dulcerodrigues.info/plantas/pt/ortiga_pt.html). Ou seja, a maléfica urtiga também tem lá suas qualidades!  O mesmo se passa com a Cannabis, seja ela sativa, indica ou ruderalis, mas as pessoas não querem ver. Ou elencam suas virtudes como se não trouxesse nenhum malefício, ou apontam apenas para os malefícios e esquecem de suas virtudes[iii].
Não se trata de ser a favor ou contra as drogas. O “contra ou a favor” é redutor. Porém, se se trata de exigir a legalização de alguma coisa no atual estado das coisas é preciso assumir, mesmo que temporariamente a lógica do Estado, que é a do contra ou a favor, mas que o “contra ou a favor” seja o resultado de uma reflexão, isso deve ser exigido sempre. Outra coisa que se deve exigir é que a discussão nunca gire em torno de “você é a favor ou contra a maconha?”, discussões que tomam essa questão como ponto de partida me parecem infrutíferas. Afinal, não se trata de se posicionar em relação à maconha, a posição que se deve tomar é em relação a sua legalização de modo que o horizonte a partir do qual devemos nos interrogar deve nos permitir assumir uma posição favorável ou contrária a LEGALIZAÇÃO da maconha. Por esse motivo, resolvi apresentar alguns argumentos favoráveis a legalização. Furto-me de oferecer os argumentos contrários, pois os meus são a radicalização do fundamento que os sustentam. Me explico: todos os argumentos contrários a legalização da maconha, em última instância, recorrem a ideia de preservação da vida como fundamento da criminalização da planta em questão, no que se segue procuro mostrar que a legalização, e não sua marginalização, é compatível com a vida. Importa observar, mais umas vez,  que não estou dizendo que a maconha é compatível com a vida, afirmo que A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA É COMPATÍVEL COM A DEFESA DA VIDA. Não se trata de uma apologia ao uso da maconha, trata-se sim de uma APOLOGIA À LEGALIZAÇÃO DA MACONHA, isso, até onde sei, não é crime. Passemos às perguntas freqüentes:

Se legalizarmos a maconha estaremos estimulando o consumo?
A legalização da maconha deve ser entendida como regulação sobre sua produção, comércio e uso. Legalizar não equivale, portanto, a permitir que a maconha seja  objeto de propagandas publicitárias. Muitas das pessoas que lutam por sua legalização são contrárias à exploração propagandística da cannabis. Legalizar é impor regras ao consumo: idade, quantidade, etc.

A legalização da maconha causaria um problema de saúde pública?
Caso a nossa preocupação legitima seja com aquelas pessoas que fazem uso da cannabis e com os cofres do Estado, a legalização é a melhor saída. (a) A ilegalidade contribui para prejudicar a saúde das pessoas que utilizam a erva, pois as mesmas não têm controle de qualidade do produto que estão a utilizar. Se a ideia é preservar a saúde dos usuários precisamos da presença do Estado para garantir que os únicos riscos serão aqueles causados pelo consumo da maconha e não dos aditivos que a ela são acrescentados; (b) a legalização permitiria  o acesso a informações eficazes e não moralistas, sou dos que acreditam que a informação verdadeira (o conhecimento) é sempre saudável: com informações sobre os riscos, benefícios, prazeres e desprazeres as pessoas que vierem a fazer uso da droga estarão mais conscientes de suas escolhas e saberão reduzir os danos e amplificar os benefícios (lembremos que os estudos sobre a maconha são inviabilizados por conta da atual política de drogas assumida pelo Estado); (c) a legalização permitiria a geração de impostos que cobririam os eventuais gastos com a saúde dxs usuárixs, além de contribuir para diminuir os enormes valores gastos pelo Estado nessa política de combate ao uso das drogas, no final das contas o Estado teria uma diminuição dos seus gastos.

Legalizar a maconha é legalizar a porta de entrada para outras drogas?
Em primeiro lugar, a ideia de que a maconha é porta de entrada para outras drogas não pode ser aceita sem que se atente para a atual política proibicionista e, por conseqüência, burra. A maconha muitas vezes acaba funcionando como porta de entrada para outras drogas não porque seria a desencadeadora do vício, mas porque é proibida: (a) a proibição é responsável por uma série de desinformações sobre o uso da cannabis, somos bombardeados com propagandas retrógradas que trabalham com a ideia de que se alguém der uma tragada logo sairá assaltando e matando pessoas por aí; quando alguém faz uso da cannabis e percebe que as coisas não se passam do modo como querem que pensemos o raciocínio que se segue é o seguinte: se a maconha não é o bicho que falavam, as outras drogas também não devem ser. Defender a legalização é também defender que informações não preconceituosas sejam veiculadas e que as pessoas que venham a utilizá-la não acabem desenvolvendo o argumento falacioso apresenta acima (se a maconha não é tão mal assim, a cocaína, a pasta base também devem não ser). Legalizar a maconha equivale a diminuir as possibilidades de que ela funcione como porta de entrada para outras drogas. (b) Muitas pessoas passam a utilizar outras drogas porque, devido à proibição, acabam não conseguindo encontrar maconha e compram o que o traficante dispõe no momento. Legalizar a maconha equivale a regulamentar seus pontos de produção e venda (e mesmo o modo como ela será comercializada). A legalização garantiria o acesso dxs usuárixs e também que a pessoa (ou cooperativa) que a comercializa-se não pudesse comercializar outras drogas, isso diminuiria a passagem a outras drogas. Legalizar a maconha não equivale a abrir uma porta de acesso a outras drogas. A legalização deve ser entendida como o estreitamento controlado dessas porta que está aberta por conta de sua marginalização.

Da legalização resultaria a permissividade de uso pelas crianças?
Muitas crianças e adolescentes já fazem uso da cannabis e, por estarem à margem da legalidade, acabam sendo expostas a todos os riscos acima apresentados. A legalização permitira, como já apontado, a disseminação de informações objetivas, diminuiria os riscos e acabaria com o uso da maconha como porta de acesso a outras drogas. Tudo isso contribuiria para a construção de espaços em que crianças e adolescentes poderiam buscar informações precisas e compartilhar seus problemas conjuntamente e sem moralismos. Além disso, uma vez que o consumo de drogas é proibido a menores de idade, a legalização diminuiria o tráfico e isso diminuiria o poder de ação dos traficantes, pois estes perderiam boa parte de sua fonte de renda, disso poderia resultar a diminuição de sua influência e a capacidade de disseminar suas drogas entre crianças e adolescentes.

A legalização da maconha aumentaria a criminalidade?
A legalização da maconha diminuiria a criminalidade e os gatos financeiros que o Estado tem com o combate às drogas. A criminalidade não é decorrência da utilização da cannabis, mas de sua proibição geradora de todo um movimento que opera na ilegalidade e contribui para a corrupção das pessoas. É preciso observar que, além da criminalidade ser gerada pela proibição, há uma falsa ideia que procura associar as pessoas que fazem uso da cannabis a criminosos, para constatar isso basta que se abra qualquer jornaleco e se lerá uma série de matérias criminais que associam os crimes ao uso de drogas. Não pretendo dizer que os jornais estão mentindo (embora, de fato, eu pense que seja assim na maioria das vezes), argumento que transformam a exceção em regra. Dentro do universo de pessoas que utilizam cannabis somente uma minoria realmente comete atos criminosos, fico pensando como seria viver em uma sociedade em que não houvesse tanta hipocrisia em torno do uso da cannabis e as pessoas se sentissem a vontade para falar publicamente que fazem uso dela. Talvez o panorama seria bem diferente: ao invés de lermos somente “se drogou e assaltou”, leríamos coisas como “usou maconha e compôs uma linda canção” (http://www.youtube.com/watch?v=Q9zmXJgjE_Y), um bom exemplo aqui é a música Refazenda de Gilberto Gil (http://www.youtube.com/watch?v=uT21kqCoQro), ou ainda, “usou maconha e foi doar brinquedos a crianças carentes”. Não estou sustentando que as pessoas que fazem uso de cannabis são exemplos, mas que elas são como todas as outras pessoas (violentas, calmas, generosas, agressivas) e que quando se toma essas pessoas por criminosos se comete um injustiça por meio de uma generalização apressada.

Pelos motivos expostos (e por outros não expostos aqui) que eu, Cleiton Zóia Münchow, apoio a marchas da maconha que acontecerá no mês de maio em Campo Grande.Lutar pela legalização da maconha é lutar pelo direito a autonomia, pela melhor aplicação das verbas públicas, pela realização dos ideias democráticos que norteiam nosso Estado. Está mais do que na hora de começarmos um debate sincero sobre autonomia, drogas e legalização. Eu vou, quem vai?

Para curtir o som do Plant Hemp clique aqui: http://www.youtube.com/watch?v=YHD9E2kI4l4

Para informações não preconceituosas sobre drogas clique aqui:http://coletivodar.org/

Para informações sobre a Marcha da Maconha que acontecerá em Campo Grande: https://www.facebook.com/groups/138733409589502/




[i] Particularmente não desejo que o Planet Hemp se esfregue num pé de urtigas, minha intenção foi apenas a de utilizar uma estratégia para chamar a atenção de possíveis leitores e leitoras que fazem uso da sentença que aparece na música deles sem refletir sobre a superficialidade dela.
[ii] "- Enquanto fonte de prazer. Devemos estudar as drogas. Devemos experimentar as drogas. Devemos fabricas boas drogas - capazes de produzir um prazer muito intenso. O puritanismo, que coloca o problema das drogas - um puritanismo que implica o que se deve estar contra ou a favor - é uma atitude errônea. As drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma forma que há boa música e má música, há boas e más drogas. E então, da mesma forma que não podemos dizer somos "contra" a música, não podemos dizer que somos "contra" as drogas". (FOUCAULT. http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/sexo.pdf )

[iii] Uso a palavra virtude no sentido maquiaveliano do termo: a força do príncipe para dominar a fortuna.

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