Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Sujeira e Gênero -Beatriz Preciado


                                                                                                  Sujeira e Gênero. Mijar/Cagar. Masculino/Feminino

Beatriz Preciado

            Além das fronteiras nacionais, milhões de fronteiras de gênero, difusas e tentaculares, segmentam cada metro quadrado do espaço que nos rodeia. Ali onde a arquitetura parece simplesmente se pôr a serviço das necessidades naturais mais básicas (dormir, comer, cagar, mijar...) suas portas e janelas, seus muros e aberturas, regulando o acesso e a vista, operam silenciosamente como a mais discreta e efetiva das "tecnologias de gênero."(1)

     
Assim, por exemplo, os sanitários públicos, instituições burguesas generalizadas em cidades européias a partir do século XIX, pensadas primeiro como espaços de gestão do lixo corporal nos espaços urbanos(2), vão converter-se progressivamente em cabines de vigilância do gênero. Não é casual que a nova disciplina fecal imposta pela nascente burguesia ao final do século XIX seja contemporânea do estabelecimento de novos códigos conjugais e domésticos que exigem a redefinição espacial dos gêneros e que serão cúmplices da normalização da heterossexualidade e da patologização da homossexualidade.
            No século XX, os sanitários viraram autênticas células públicas de inspeção em que se avalia a adequação de cada corpo nos códigos vigentes da masculinidade e da feminilidade. Na porta de cada sanitário, como único signo, uma interpelação de gênero: masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, chapéu masculino ou chapéu feminino, bigode ou rosto liso, como se tivesse que entrar ao banho e refazer-se o gênero mais que desfazer-ser da urina e da merda. Não se pergunta se vamos cagar ou mijar, se temos ou não diarréia, nada interessa, nem a cor nem o tamanho. A única coisa que importa é o GÊNERO.   
Tomemos, por exemplo, os banheiros do aeroporto George Pompidou de Paris, escoadouros de dejetos orgânicos internacionais em meio a um circuito de fluxo de globalização do capital. Entremos no banheiro das mulheres. Uma lei não escrita autoriza as visitantes casuais dos sanitários a inspecionar o gênero de cada novo corpo que decide cruzar a soleira da porta. Uma pequena multidão de mulheres femininas, que com freqüência dividem um ou vários espelhos e pias, atuam como inspetoras anônimas do gênero feminino, controlando o acesso de novos visitantes de vários compartimentos privados em cada um dos quais se esconde, entre conveniência e imundice, um sanitário. Aqui, o controle público da feminilidade heterossexual se exerce primeiro mediante o olhar, e só em caso de dúvida mediante a palavra.
        Qualquer ambigüidade de gênero (cabelo excessivamente curto, falta de maquiagem, pelos curtos ao redor do lábio em forma de bigode, passo muito afirmativo...) exigirá um interrogatório do usuário potencial que se verá obrigado a justificar a coerência de sua escolha de sanitário: "Ei, você. Se equivocou de banheiro, o dos homens esta à direita." Um cúmulo de signos do gênero do outro banheiro exigirá irremediavelmente o abandono do espaço mono-gênero sob pena de sanção verbal ou física. Em último caso, sempre é possível alertar a autoridade pública (com freqüência uma representação masculina do governo estatal) para retirar os corpos trânsfugos (pouco importa se trata de um homem ou de uma mulher masculina).
Se, superando este exame do gênero, ganharmos acesso a uma das cabines, encontraremos então um cômodo de 1x1,50 m² que tenta reproduzir em miniatura a privacidade de um banheiro doméstico. A feminilidade se produz precisamente pela subtração de toda função fisiológica do olhar público. No entanto, a cabine proporciona uma privacidade unicamente visual. É assim que a domesticidade estende seus tentáculos e penetra o espaço público. Como faz notar Judith Halberstam "o banheiro é uma representação, uma paródia, da ordem doméstica fora da casa, no mundo exterior"(3).
        Cada corpo fechado em uma cápsula evacuatória, de paredes opacas que o protegem de mostrar seu corpo em nudez, de expor a vista pública a forma e a cor de suas defecações, dividem no entanto o som dos jatos da chuva dourada e o cheiro das merdas que se espalham nos sanitários próximos. Livre. Ocupado. Uma vez fechada a porta, um vaso branco de 40 a 50 centímetros de altura, como se tratasse de um tamborete de cerâmica perfurado que conecta nosso corpos defecante a um invisível esgoto universal (na qual se misturam os dejetos de mulheres e homens) nos convida a sentarmos tanto para cagar como para mijar. 
Cruzemos o corredor e vamos agora ao banheiro dos rapazes. Cravados na parede a uma altura de 80 a 90 centímetros do solo, um ou vários mictórios se agrupam em um espaço, frequentemente destinado a lavatórios e igualmente acessível a visão pública. Dentro deste espaço, uma peça fechada, separada categoricamente da visão pública por uma porta de trinco, dá acesso a um vaso semelhante ao que mobilia os banheiros das mulheres. Apartir de princípios do século XX, a única lei arquitetônica comum a toda construção de banheiros, de rapazes, é esta separação de funções: mijar-de-pé-mictorio/cagar-sentado-vaso. Dito de outro modo, a produção eficaz da masculinidade heterossexual depende da separação imperativa da genitalidade e analidade. Poderíamos pensar que a arquitetura constrói novas barreiras quase naturais respondendo a uma diferença essencial de funções entre homens e mulheres. Na realidade, a arquitetura funciona como uma verdadeira prótese do gênero que produz e fixa as diferenças entre tais funções biológicas.
        O mictório, como uma protuberância arquitetônica que cresce desde a parede e se ajusta ao corpo, atua como uma prótese da masculinidade, facilitando a postura vertical para mijar sem receber respingos. Mijar de pé publicamente é uma das performances construtivas da masculinidade heterossexual moderna. Deste modo, o discreto mictório participa da produção da masculinidade no espaço público. Por isto, os mictórios não estão presos em cabines fechadas, senão em espaços abertos a visão coletiva, posto que mijar-de-pé-entre-caras é uma atividade cultural que gera vínculos de sociabilidade divididos por todos aqueles, que ao fazê-lo publicamente, são reconhecidos como homens. 
Duas lógicas opostas dominam o banheiro das moças e rapazes. Enquanto o banheiro das moças é a reprodução de um espaço doméstico, em meio ao espaço público, os banheiros de rapazes são umas pregas do espaço público em que se intensificam as leis de visibilidade e posição ereta que tradicionalmente definiam o espaço público como espaço de masculinidade. Enquanto o banheiro das moças opera como um mini-panopticon em que as mulheres vigiam coletivamente seu grau de feminilidade heterossexual em que todo avanço sexual resulta uma agressão masculina, os banheiros dos rapazes aparecem como um terreno propício para a experimentação sexual. Em nossa paisagem urbana, o banheiro de rapazes, resto quase-arqueológico de uma época de masculinismo mítico em que o espaço público era privilegio dos homens, resulta ser, junto com os clubes automobilísticos, esportivos ou de caça, e certos bordéis, um dos redutos públicos em que os homens podem utilizar-se de jogos de cumplicidade sexual sob a aparência de rituais de masculinidade.
Mas precisamente porque os banheiros são cenários normativos de produção da masculinidade, podem funcionar também como um teatro de ansiedade heterossexual. Neste contexto, a divisão espacial de funções genitais e anais protege contra uma possível tentação homossexual, ou melhor, condena ao âmbito da privacidade. A diferença do mictório, nos banheiros de rapazes, o vaso, símbolo da feminilidade abjeta/sentada, preserva os momentos de defecação de sólidos (momentos de abertura anal) da visão pública. Como sugere Lee Edelman(4), o ânus masculino, orifício potencialmente aberto a penetração, deve abrir-se somente em espaços fechados e protegidos da visão de outros homens, porque de outro modo poderia suscitar um convite homossexual.
        Não vamos aos banheiros para evacuar, senão para fazer nossas necessidades de gênero. Não vamos mijar, senão reafirmar os códigos da masculinidade e da feminilidade no espaço público. Por isso, escapar do regime de gênero dos banheiros públicos é desafiar a segregação sexual que a moderna arquitetura urinária nos impõe há mais ou menos dois séculos: público/privado, visível/invisível, decente/obsceno, homem/mulher, pênis/vagina, de-pé/sentado, ocupado/livre... 
Uma arquitetura que fabrica os gêneros enquanto, debaixo do pretexto da higiene pública, diz ocupar-se simplesmente da gestão de nossas sujeiras orgânicas. SUJEIRA>GÊNERO. Infalível economia produtiva que transforma a sujeira em gênero. Nãonos enganemos: a máquina capital-heterossexual não desperdiça nada. Ao contrário, cada momento de expulsão de um dejeto orgânico, serve como ocasião para reproduzir o gênero. As inofensivas máquinas que comem nossas merdas são na realidade normativas próteses de gênero.


(1). Utilizo aqui a expressão de Teresa De Lauretis para definir o conjunto de instituições e técnicas, desde o cinema até o direito, passando pelos banheiros públicos, que produzem a verdade da masculinidade e a feminilidade.
Ver: Teresa De Lauretis, Technologies of Gender, BloomingtonIndiana University Press, 1989.
(2). Ver: Dominique Laporte, Histoire de la Merde, Christian Bourgois Éditeur, Paris, 1978; y Alain Corbin, Le Miasme et la Jonquille, Flammarion, Paris, 1982.
(3). Judith Halberstam, "Techno-homo: on bathrooms, butches, and sex with furniture," in Jenifer Terry and Melodie Calvert Eds., Processed Lives. Gender and Technology in the Everyday Life, Routledge, London and New York, 1997, p.185.
(4). Ver: Lee Edelman, "Men's Room" en Joel Sanders, Ed. Stud. Architectures of Masculinity, New York, Princeton Architectural Press, 1996, pp.152-161.

sábado, 29 de setembro de 2012

AS FERRAMENTAS DO SENHOR NUNCA DESARMARÃO A CASA DO SENHOR


Comentários feitos no painel sobre “O pessoal e o político”, durante a conferência sobre o segundo sexo, em outubro e 1979.
(Audre Lorde)

Consenti em tomar parte na conferência do Instituto de Humanidades  da Universidade de Nova Iorque sob a condição de que eu comentaria a respeito dos ensaios que tratam do papel da diferença na vida das mulheres americanas; a diferença de raça, a sexualidade, a classe e a idade. A ausência dessas considerações diminui qualquer discussão feminista do pessoal e do político.

Presumir que possa existir uma discussão sobre a teoria feminista, nesta data e local, sem examinar nossas várias diferenças e sem uma contribuição significativa das mulheres pobres, das mulheres negras e do terceiro mundo, e das lésbicas é uma arrogância tipicamente acadêmica. E ainda, estou aqui como lésbica feminista negra no único painel desta conferência em que está representada a contribuição das feministas negras e lésbicas. O que isso nos diz acerca da visão desta conferência é triste, num país onde  racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis. Ler este programa é assumir que as lésbicas e as mulheres negras não têm nada a dizer sobre o existencialismo, o erótico, a cultura e o silêncio da mulher, do desenvolvimento da teoria feminista, ou da heterossexualidade e o poder. E o que quer dizer, em termos pessoais e políticos, que as duas mulheres negras que fizeram apresentações aqui foram buscadas literalmente de última hora? O que quer dizer que as ferramentas do patriarcado racista sejam usadas para examinar o futuro desse mesmo patriarcado?  Quer dizer que somente os perímetros mais estreitos de uma mudança social serão possíveis e permitidos.

A ausência de qualquer consideração do conhecimento lésbico ou das mulheres terceiro-mundistas deixa um grave vazio dentro desta conferência e dentro dos ensaios aqui apresentados. Por exemplo, num ensaio sobre as relações materiais entre mulheres, estava consciente de que o modelo usado para representar o labor da cinza* ignora por completo meu conhecimento como lésbica negra. Neste ensaio não havia nenhuma análise sobre a mutualidade entre mulheres, nem dos sistemas de apoio compartilhado, nem das interdependências entre as lésbicas e as mulheres que se identificam com mulheres. Contudo, é somente dentro do modelo patriarcal da criação que as mulheres “que tentam emancipar-se talvez paguem  preço demasiado alto dado os resultados”, como esse ensaio declara.
Para as mulheres, a necessidade e o desejo de compartilhar a afetividade entre si não é patológico é um resgate, e é dentro deste conhecimento que nosso poder verdadeiro se redescobre. É essa conexão verdadeira entre mulheres que tanto teme o mundo patriarcal. Porque é somente sob uma estrutura patriarcal  que a reprodução é o único poder social disponível às mulheres.

A interdependência entre mulheres é o único caminho em direção a uma liberdade que permita ao “eu” “ser”, para criar e não para ser utilizada. Esta é a diferença entre o “ser”passivo e o “ser” ativo.
Somente defender a tolerância à diferença entre as mulheres é fazer uma reforma grosseira. É a negação completa da função criativa desempenhada pela diferença em nossas vidas. Porque a diferença não deve ser somente tolerada, ela deve ser vista como uma fonte de polaridades necessárias, na qual nossa criatividade pode brilhar como dialética. Somente assim a necessidade de interdependência deixa de ser ameaçadora. Somente dentro dessa interdependência de esforços diferentes, reconhecidos e iguais, é que se pode engendrar o poder para buscar novas maneiras de ativamente “ser”, tanto como o valor e o  fundamento para atuar onde não há promissórias.

Dentro da interdependência das diferenças mútuas não dominantes se encontra a segurança que nos permite descer ao caos do conhecimento e regressar com visões verdadeiras de nosso futuro, junto com o poder concomitante para efetuar as mudanças que podem realizar o bom futuro. A diferença é essa conexão em carne viva e poderosa da qual se forja nosso poder pessoal.

Como mulheres, nos ensinaram a ignorar nossas diferenças ou a vê-las como causas para a separação e suspeita, ao invés de apreciá-las como forças para a mudança. Sem comunidade, não há liberação. Só há o mais vulnerável e temporal armistício entre o despojo de nossas diferenças, nem o pretexto patético de que as diferenças não existem.

Essas entre nós que estão fora do círculo da definição social de mulher aceitável; essas entre nós  que foram forjadas nos crisóis (potes, vasos) da diferença, essas entre nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são maiores, sabem que o sobreviver não é uma habilidade acadêmica. Significa aprender a ficar só, a não ser popular, e, às vezes, vituperada, tanto como fazer uma causa em comum com essas que se identificam fora das estruturas, para poder definir e buscar um mundo no qual todas possamos florescer. Significa aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças. Porque as ferramentas do senhor nunca desarmarão a casa do senhor. Talvez nos permitam ganhar o jogo temporariamente, mas nunca nos deixarão efetuar uma mudança genuína. E este ato é ameaçador somente para aquelas mulheres que ainda definem a casa do Senhor como único recurso de apoio.

As mulheres pobres e terceiro-mundistas sabem que existe pouca diferença entre as manifestações cotidianas e a desumanização por meio da escravidão conjugal e da prostituição, porque são nossas filhas que fazem fila na Rua 42 [uma zona de prostituição em Nova Iorque]. A observação de palestinas negras sobre os efeitos da impotência relativa e  das diferenças entre as relações entre mulheres e homens negros e mulheres e homens brancos demonstra alguns de nossos problemas especiais como feministas negras. Se a teoria branca americana não tem que dar conta das diferenças entre nós, nem das diferenças que resultam nos aspectos de nossas opressões, então que fazem vocês com o fato de que as mulheres que limpam suas casas e cuidam de seus filhos enquanto vocês assistem a conferências sobre a teoria feminista são, em sua maioria, pobres e terceiro-mundistas? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?

Num mundo de possibilidades iguais para todas, nossa visão pessoal é a base para a ação política. O fracasso das feministas acadêmicas ao não reconhecer a diferença como uma força crucial é o fracasso de não chegar mais além da primeira lição patriarcal. Em nosso mundo, divide e conquistarás deve converter-se em define e te apoderarás.

Por que não buscaram mais mulheres negras e terceiro-mundistas para participar desta conferência? Por que consideram duas chamadas telefônicas a mim como consultas? Sou a única fonte que dispões de nomes de negras feministas? Mesmo que o ensaio sobre a palestina negra termine com uma importante e poderosa conexão de amor entre mulheres, o que há de cooperação inter-racial entre as feministas que não se amam?

Em círculos feministas acadêmicos, a resposta a estas perguntas é, freqüentemente, “Não sabemos a quem perguntar”.  Trata-se da mesma evasão de responsabilidade, a mesma desculpa que exclui a arte das mulheres negras das exposições de mulheres; a obra de mulheres negras da maioria das publicações feministas, com exceção de uma “edição especial de mulheres terceiro-mundistas”, e os textos de mulheres negras e de suas listas de leitura. Porém, como Adrienne Rich indicou recentemente numa fala, as feministas brancas se educaram enormemente nestes dez anos, por que não se educaram também sobre as mulheres negras e as diferenças entre nós –brancas e negras- quando se trata da chave de nossa sobrevivência como movimento?

Ainda se pede às mulheres de hoje que se esforcem para diminuir a ignorância masculina e educar os homens sobre a nossa existência e nossas necessidades. Esta é a  velha e primordial tarefa de todos os opressores para manter os oprimidos  ocupados com interesses do Senhor. Agora escutamos que, não obstante a tremenda resistência,  é o trabalho das mulheres negras e terceiro-mundistas educar às mulheres brancas acerca de nossa existência, nossas diferenças, nossos papéis relativos em nossa sobrevivência comum. Este é um desvio de energia e uma repetição trágica do pensamento racista patriarcal.

“Do conhecimento das condições genuínas e nossas vida devemos extrair a força para viver e a razão para atuar”.

O racismo e a homofobia são condições reais em todas nossas vidas e neste lugar e neste tempo. Peço a todas que estão aqui que busquem  neste lugar do conhecimento em si mesmas e que toquem o terror e o ódio a qualquer diferença que vive aí. Vejam que cara tem. Somente então, o pessoal tanto quanto o político poderão começar a iluminar todas as nossas opções.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

INSCRIÇÕES ABERTAS PARA CICLO DE ESTUDOS SOBRE SEXO E GÊNERO- IFMS/COXIM

Entre os dias 24 e 28 de setembro de 2012  a Casa da Diferença estará com inscrições abertas para as atividades de estudos que acontecerão neste semestre. Contamos com 15 vagas, que serão preenchidas por ordem de inscriçãoAs inscrições (contendo nome completo, telefone e/ou celular) devem ser feitas exclusivamente pela internet no seguinte endereço eletrônico:casa_dadiferenca@hotmail.com

Este é o terceiro módulo de estudos do grupo. No primeiro, fizemos a leitura e a discussão do artigo de Beatriz Preciado -  Multidões queer: por uma política dos anormais-, e tivemos como objetivos principais o contato com as teses da autora e a construção de uma espécie de mapa teórico que nos permitisse identificar autores e autoras importantes para compreendermos o processo de constituição do sexo dentro da atual sexopolítica contemporânea. No segundo, realizamos a leitura e a discussão do primeiro volume da História da sexualidade: a vontade de saber, escrito pelo filósofo Michel Foucault. Tentamos determinar quais eram as principais teses expressas no livro e entender a constituição do dispositivo da sexualidade.  Para o terceiro módulo escolhemos a obra Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, escrita por Thomas Laqueur. Nossa escolha não foi gratuita, a leitura de Thomas Laqueur, assim como a de Preciado e a de Foucault, nos fornece elementos, por meio de analises de materiais ligados à produção da anatomia humana, para colocar o sexo, enquanto entidade estanque e biológica, em questão.

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

01/10/2012
Filme: A pele que habito
08/10/2012
Capítulo um: Da linguagem e da carne
22/10/2012
Capítulo dois: Destino é anatomia
29/10/2012
Capítulo três: Nova Ciência, uma só carne
05/11/2012
Capítulo quatro: Representando o sexo
19/11/2012
Capítulo cinco: A descoberta dos sexos
03/12/2012
Capítulo seis: O sexo socializado
10/12/2012
Filme: Morrer como um homem


NOSSOS ENCONTROS:

ONDE? IFMS/Coxim - atualmente estamos no terceiro piso da escola Padre Nunes (marcelão), a sala ainda será definida.
QUANDO? Segundas-feiras (leia o cronograma de atividades)
HORAS? das 15h40  às 17h40.

CERTIFICADOS:
Nossas reuniões contabilizam um total de 16h, porém, para que o/as participantes dediquem um período de tempo à leitura dos textos, nosso certificado contemplará mais 4h, totalizando 20h. Para o recebimento dos certificados é preciso participar de 75% das atividades presenciais.

LEMBRETE: não há  pré-requisitos para participar das reuniões, além da vontade de pensar e da  realização da leitura prévia dos textos que serão debatidos, claro! O texto será disponibilizado na Central Cópias a partir do dia 27/09.


INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS:

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud; trad. Vera Whately. - Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.


SOBRE O LIVRO (orelha escrita por Silvia Alexim Nunes):
“A diferença de sexos é ainda hoje uma questão que instiga antropólogos, filósofos, sociólogos e psicanalistas. O assunto também tornou-se cotidiano na vida cultural em geral, matéria constante na imprensa mundial. Os estudos mais recentes sobre o tema, principalmente aqueles ligados à história das mentalidades, trazem uma novidade, que é o tema deste livro: a formulação de que as relações sociais de sexos não são a-históricas, dado este que rompe com qualquer perspectiva naturalista ou biologizante.
Nesta perspectiva, Inventando o Sexo é um marco. Não só pela pesquisa histórica rigorosa que Thomas Laqueur realiza, mas principalmente pelas consequências profundas e surpreendentes que ele tira de seu objeto de estudo. Analisando os discursos sobre o corpo, a fisiologia reprodutiva e as relações entre os sexos, Laqueur demonstra como as diferentes formas de se pensar a diferença entre os sexos, de Aristóteles à Freud, pouco tiveram a ver com os progressos da ciência. Ao contrário, propõe que a passagem de um modelo de sexo único que predominou nas sociedades ocidentais da Antiguidade até o final da Renascença e que advoga a existência de um só sexo, o masculino, do qual a mulher seria uma versão imperfeita, para o modelo de dois sexos que aparece no século XVIII e que trata homens e mulheres como radicalmente diferentes e complementares, não se deu em função de um avanço da ciência, mas sim como resposta as necessidades políticas fundamentais para a construção da sociedade liberal moderna.
Para Laqueur as diferentes formas de interpretar o corpo e as diferenças entre os sexos não resultam de um conhecimento específico, sendo, ao contrário, produções discursivas principalmente dentro de um contexto de lutas e conflitos em que estão em jogo gênero e poder. Indo mais longe ainda, sugere que as teorias sobre a diferença sexual tiveram uma influência significativa no curso do progresso científico e na interpretação de resultados experimentais específicos.
A radicalidade de suas teses torna esse livro leitura obrigatória para aqueles que pretendem se dedicar ao estudo das relações entre corpo, sexo e gênero nas sociedades contemporâneas, onde ciência e as novas tecnologias reprodutivas recolocam a necessidade de uma reflexão profunda sobre o tema”.

SOBRE O AUTOR
THOMAS LAQUEUR  é professor de história da UCLA (Universidade da Califórnia), e Berkeley, onde realiza pesquisas sobre história social e história da medicina. Em 1967, graduou-se  pelo Swarthmore College em filosofia, história e biologia e, em 1973, completou sua formação no Nuffield College e na Universidade de Princeton. Entre 1980 e 1981 estudou medicina na UCLA como preparação para a produção deste livro. É membro do Centro Nacional de Ciências Humanas, na Califórnia do Norte, e da Academia Americana de Artes e Ciências. É membro fundador do jornal Representations e escreve regularmente para o London Review of Books e para a New Republic.

Entrevista com Thomas Laqueur: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=469&secao=199


SOBRE OS FILMES:

A PELE QUE HABITO

Richard Ledgard (Antonio Bandeiras) é um cirurgião plástico que, após a morte da sua mulher num acidente de carro, se interessa pela criação de uma pele com a qual poderia tê-la salvo. Doze anos depois, ele consegue cultivar esta pele em laboratório, aproveitando os avanços da ciência e atravessando campos proibidos como os da transgênese com seres humanos. No entanto, este não será o único delito que o cirurgião irá cometer.


FICHA TÉCNICA


Diretor: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Cornet, Roberto Álamo, Blanca Suárez, Eduard Fernández, José Luis Gómez, Bárbara Lennie, Susi Sánchez
Produção: Agustín Almodóvar, Esther García
Roteiro: Pedro Almodóvar, Agustín Amodóvar
Fotografia: José Luis Alcaine
Trilha Sonora: Alberto Iglesias
Duração: 133 min.
Ano: 2011
País: Espanha
Gênero: Suspense
Cor: Colorido
Distribuidora: Paris Filmes
Estúdio: Canal+ España / El Deseo S.A. / Televisión Española (TVE) / Instituto de Crédito Oficial (ICO)
Classificação: 16 anos

(As informações sobre o filme foram retiradas de: http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/a-pele-que-habito/id/17478 )



MORRER COMO UM HOMEM

Houve uma vez uma guerra… Na escuridão da noite, o jovem soldado está ausente sem licença. Tonia, veterano transexual nos shows de drags em Lisboa, vê o mundo ao seu redor desmoronar. A concorrência com os jovens artistas ameaça seu status de estrela. Pressionada pelo jovem namorado Rosário para assumir sua identidade feminina, fazendo a operação que o transformará em mulher, Tônia luta contra suas profundas convicções religiosas. Se, por um lado, ela quer ser a mulher que Rosário deseja, por outro sabe que diante de Deus jamais será mulher. E seu filho, a quem abandonou quando era criança, agora um desertor da guerra, está à sua procura. Tônia descobre estar muito doente. Para ficar longe de todos os problemas, ela viaja para o campo com Rosário, com o pretexto de visitar o irmão. Rosário toma o caminho de sua infância, mas nunca encontrará o caminho certo. Perdidos, eles vão dar em um bosque, um mundo no qual eles se deparam com a enigmática Maria Bakker e sua amiga Paula. E esse encontro vai transformar o mundo em sua cabeça.

FICHA TÉCNICA

Diretor: João Pedro Rodrigues
Elenco: Fernando Santos, Alexander David, Gonçalo Ferreira de Almeida
Produção: Maria João Sigalho
Roteiro: João Pedro Rodrigues, Rui Catalão
Fotografia: Rui Poças
Duração: 133 min.
Ano: 2009
País: Portugal, França
Gênero: Drama
Cor: Colorido
Distribuidora: Não definida

(As informações sobre o filme foram retiradas de: http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/morrer-como-um-homem/id/16349)

Filme completo disponível emhttp://www.youtube.com/watch?v=kwuTj52iFNk

sábado, 22 de setembro de 2012

Vítimas do Machismo de Suas Mulheres e Companheiras


(Letícia Lanz, 22-09-2012). Todos os dias ao redor do mundo, um grande número de mulheres são vitimadas pela violência de maridos e companheiros machistas, continuamente alimentados por uma cultura que leva o homem a acreditar ser dono da mulher. Felizmente, graças à militância feminista de décadas, muitas dessas mulheres já conseguem expor publicamente seu drama, revelando a face monstruosa de homens que as torturam, ferem e matam, seus corpos e sobretudo suas almas.
Mas há um outro lado da violência, também machista, que nunca vem à tona. Que, quando muito, é comentada a boca pequena, onde gritos dilacerantes de angústia e dor se transformam em sussurros amedrontados, cheios de vergonha e culpa.     
Estou falando de mulheres que torturam e violentam seus maridos e companheiros transgêneros, amplificando a graus inimagináveis seus tormentos existenciais, que já são insuportavelmente grandes.
A todo momento, recebo cartas de homens em estado de grande sofrimento e aflição, que nunca “agrediram” e que, muito ao contrário, sempre “agradaram” suas mulheres e companheiras, fazendo o possível e o impossível para corresponder às expectativas que elas têm de um bom cônjuge, um bom pai, um companheiro atento, fiel , carinhoso.
Pois bem: – quero denunciar, contando apenas com a pouca voz que disponho, as agruras existenciais desses homens que, apesar de fiéis ao matrimônio e cumpridores dos seus deveres para com suas famílias e para com a comunidade, estão sendo tratados por suas esposas e companheiras como delinquentes, devassos e depravados, exclusivamente em função da sua condição transgênera.
São absolutamente desumanas as torturas e humilhações diárias a que esses homens transgêneros são submetidos por mulheres machistas, horrorizadas com a descoberta da “feminilidade” dos seus parceiros amorosos. A verdade é que o “machismo feminino” dirigido a companheiros e maridos transgêneros é tão horrenda e cruel quanto o machismo praticado pelos homens contra as mulheres.
A grande maioria das mulheres transformam-se em empedernidas torturadoras ao serem informadas, pelos seus próprios parceiros, da condição transgênera que carregam em seus corpos e almas ou, pior ainda, ao descobrirem, por obra do acaso ou má-fé de terceiros, que seus maridos têm uma vida paralela, onde estão muito longe de ser “tão homens” ou “tão machos” quanto deveriam…
O próprio processo de revelar-se à parceira pode ser considerado como uma das mais cruéis sessões de tortura pelas quais um homem transgênero pode passar. São toneladas de perguntas para as quais ninguém até hoje teve resposta, entremeadas de espasmos de cólera, choros convulsivos, imprecações, ranger de dentes e silêncios profundos.
Uma vez feita a “terrível confissão” ou  a “descoberta nefasta”, instala-se um clima de guerrilha doméstica, onde o marido ou companheiro, colocado sob permanente vigilância e suspeita, passa a ser submetido a todo tipo de crueldade mental e constrangimento físico e moral.
Essa clima doméstico perdura até a inevitável separação, quase sempre de ordem judicial, com o homem sendo dessa vez constrangido e humilhado publicamente, diante de advogados que não pouparão sua condição transgênera como motivo principal do divórcio. Muitos homens transgêneros são de tal forma vitimizados por processos judiciais de separação que perdem até mesmo o direito de conviver os filhos, em razão da sua identidade de gênero.
A miopia provocada pelo machismo faz com que as mulheres, que continuam sendo suas maiores vítimas, declarem em pesquisas a sua preferência por “homens machões” assim como a sua rejeição por homens que demonstrem qualquer traço de feminilidade. Por certo essas mulheres que rejeitam a transgeneridade dos maridos e companheiros prefeririam viver ao lado de homens que as submetessem a permanentes maus tratos, que escandalosamente as traíssem com outras (ou outros…), que não tivessem a menor atenção e carinho com os filhos.
Ao contrário das mulheres constrangidas ou violentadas por maridos machistas, que hoje dispõem de todo um aparato institucional de proteção e defesa, os homens transgêneros não dispõem de nenhuma instância a que recorrer. Além de não ser comum os homens transgêneros se agruparem em associações de ajuda e proteção mútua, não existe nenhuma lei específica para defende-los das investidas de mulheres machistas, determinadas a levar seu preconceito e intolerância às últimas consequências. Resulta que esses homens acabam muito sós e completamente desamparados em relação a quaisquer direitos que têm no terreno doméstico e familiar.
Quando muito, um ou outro, de maneira envergonhada, expõe seu drama em algum e-mail carregado de dor, como um que recebi ainda esses dias, onde o autor, em tom desesperançado, faz um depoimento pungente:
depois de vivermos todo esse tempo em clima de guerra doméstica, minha esposa disse que não aguentava a minha condição transgênera e estamos separados há quase 15 dias. Para ela, não dava mais viver comigo, pois ela não suporta a minha transgeneridade. Daí eu me sinto muito culpada de ser assim, de ter comprometido o meu casamento e ter perdido a mulher da minha vida, além de estar privado do convívio diário com minhas filhas, que ainda são muito crianças e que eu amo por demais”.
Ser transgênero é normal e é legal. É perfeitamente normal um homem vestir-se com roupas femininas e/ou realizar modificações corporais para aliviar o impulso de um desejo que dilacera seus portadores. O que não é normal é as mulheres tratarem esses homens como se fossem pessoas moralmente degradadas, impondo-lhes restrições e sofrimentos que nitidamente configuram uma forma de violência doméstica sustentada por surrados valores machistas. Ao agirem de modo preconceituoso e intolerante com seus maridos e companheiros transgêneros, essas mulheres tornam-se cúmplices de uma  ordem social que sempre negou e espoliou seus direitos mais elementares.       
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
A publicação deste texto foi gentilmente concedida por Letícia Lanz, autora deste texto que se encontra, originalmente, disponível em:  http://www.leticialanz.org/vitimas-do-machismo-de-suas-mulheres-e-companheiras/

domingo, 16 de setembro de 2012

O corpo digitalizado – Beatriz Preciado



Corresponde ao critico cultural Jonathan Sawday o mérito de ter mostrado que a arte participa em cada momento das técnicas médicas de representação que dominam as disciplinas de normalização e controle do corpo. Esta cumplicidade não tem por suporte um objeto natural comum sobre  o qual  as técnicas, artísticas ou científicas, possam aplicarem-se(volcarse) fielmente. Digamos sem rodeio: a arte, como as disciplinas de normalização e controle, não representa nada, ela produz o corpo que diz representar. Entretanto, nesta empresa de invenção tecnoplástica a arte não se encontra em uma relação de vassalagem. Não há imposição ideológica ou superestrutura científica que domine completamente a produção artística. Nos encontramos muito mais em presença de um tráfico de signos e materiais entre diversos sistemas culturais.  Os anatomistas do Renascimento iniciam um devenir público do interior do corpo. A partir deste momento, o desdobramento da razão visual pornopolítica da modernidade dará como axioma a transformação da totalidade do corpo em imagem.
O Raio X, o microscópio, a tomografia digital ou o scanner realizaram progressivamente este processo de exteriorização do corpo. Este panoptismo corporal alcança seu clímax no Visible Human Project (VHP)  quando o corpo do justiçado da prisão de Waco, no Texas, Joseph Paul Jernigan, é dissecado, convertido em informação digital e jogado na web em 1994. O cadáver de Jeringan foi congelado a menos de 85 graus C º, dividido em finíssimas lâminas, scanneado, fotografado, filmado digitalmente e transformado em cartão (carpeta) de informática de 15 gigabytes. O corpo se converte assim, literalmente, no detrito (detritus) de seus próprios processos de representação: a digitalização total faz-se acompanhar da redução da materialidade do corpo em resíduo líquido. A imagem hiper-realista de Jeringan (disponível em:  www.visiblehumanproject.com) corresponde a uma fotografia indéxica do corpo. Se trata de uma reconstrução computacional a partir de dados numéricos. O Corpo acaba por se tornar arquivo digital. Um ano depois, será digitalizada e posta em circulação (línea) a primeira Mulher Visível, que foi doada (ou quem sabe vendida) anonimamente à ciência por seu esposo, tutor último de seu interior visível, tem sido chamada de a dona de casa de Maryland.
Este improvável casal digital americano se converteu assim no modelo heterossexual universal do corpo humano visível. A representação aqui é total, não somente porque cada uma de suas células fica exposta ao olho técnico, mas, sobretudo, pelas condições de exposição pública global: o cibernético casal é visível e pode ser baixado em versão CD-Rom 24 horas por dia de qualquer ponto do planeta ,transformando, assim, a web ao mesmo tempo em teatro anatômico hiper-midiático e em reality show postmortem. Satisfazem-se assim ao paroxismo duas das exigências da modernidade: a redução do corpo a imagem capitalizável e a redução da multiplicidade corporal à diferença sexual. Neste processo de publicação do corpo, a produção da diferença sexual como fatum visível se revela como um dos elementos cruciais de uma nova empresa ocidental que toma para si como objetivo o controle e a maximização da espécie, aquilo que Foucault chamou de biopolítica.
Até o século XVI, nos recorda o historiador Thomas Laqueur, o sexo feminino não existia como entidade biológica independentemente em si mesma, mas simplesmente como uma variável débil e interiorizada do sexo masculino. Com a aparição da anatomia e do capitalismo industrial, emergem progressivamente as primeiras representações do clitóris, da vagina e das trompas de Falópio e com elas um novo regime político-visual: o humano está natural e universalmente divido em masculino e feminino, dois sexos, opostos porém complementares, cujo destino é a procriação sexual. No final do século XIX, esta teoria do corpo, apoiando-se na fotografia nascente como método documental e hermenêutico, segrega novos dispositivos de controle jurídico e médico: inventa a normalidade heterossexual, patologiza e persegue a homossexualidade, o afeminamento dos corpos considerados masculinos e a masculinização dos corpos considerados femininos. Estas técnicas de produção e controle do corpo se tornaram progressivamente moleculares a partir dos anos 40, com a identificação do mapa cromossômico individual e com o isolamento e a produção sintética dos chamados hormônios sexuais.
Esta será a era da pílula e da prótese, da invenção da transexualidade, porém também a era da mutilação sistemática dos bebes intersexuais em benefício da retórica visual da diferença sexual. Este será também o momento da emergência da crítica feminista, gay e lésbica da representação, o momento em que primeiro Claude Cahun e, em seguida, Andy Warhol iniciaram o processo de desconstrução desta estética somatopolítica.   Aqueles que haviam sido objetos monstruosos da ciência se tornaram sujeitos da representação apropriando-se e desviando as técnicas biopolíticas de produção da diferença sexual, tirando vantagem de sua promíscua relação com elas. Trata-se, então, de fazer proliferar o corpo e a sexualidade, de criar as condições para a emergência da nova corporalidade polimorfa por meio da modificação plástica do campo da experiência sensível.
A arte se afirma como uma disciplina de desenho contrasexual capaz de criticar, modificar e reinventar as condições de visibilidade do sujeito sexual contemporâneo. Uma estética que, em última análise, teria como objeto a ambiciosa e, ao mesmo tempo, sutil tarefa de produzir órgãos e determinar os contextos de sua utilização fora da economia hetero/homossexual moderna. Podemos falar assim de uma prática biopoética para qualidifcar o trabalho de muitos dos artistas e ativistas queer e transgênero contemporâneos como Hans Scheirl, Monika Treut, Del La Grace Volcano, Dieter Huber, Bob Flanagan, Annie Sprinkle, Jenny Saville, Cabello/Carceler, Bruce LaBruce, Moisés Martines, Xi Maos o Ron Athey. Nestes casos, a arte torna-se utilização insubmissa das técnicas de produção do corpo visível. Este exercício de reapropriação afeta não somente a utilização da fotografia, do cinema e do vídeo, mas também a ingestão de hormônios, as operações cirúrgicas e a fabricação performativa de paixões coletivas. Esta nova arte pílula -resposta a um corpo digital - é um dos lugares onde acontecem hoje a política e a estética como experimentos, ou, nos termos de Sloterdijk, como práticas de intoxicação voluntária.

Traduzido a partir de: http://salonkritik.net/04-06/archivo/2005/09/el_cuerpo_digit.php (Setembro de 2005)

sábado, 15 de setembro de 2012

Reunião com LGBTs e simpatizantes em Coxim


"A sexualidade é como as línguas. Todos podemos aprender várias"(Beatriz Preciado)

Amanhã, aqui na cidade de Coxim, às 15h da tarde, na SINTED (próximo a área de lazer) ocorrerá uma reunião com a população LGBT para falarmos sobre os casos de homofobia que têm acontecido aqui na cidade.

É importante lembrar que, mesmo tendo os LGBTs como público alvo, a homofobia sempre está associada ao machismo, ao sexismo, ao racismo  e ao especismo, por isso, convidamos a todos e todas (feministas, anti-racistas, defensoras dos animais, mulheres, homens, etc) para somarem suas lutas nesta data. 

Devemos somar forças para, quem sabe, conseguirmos um pouco mais de dignidade. Por fim, volto a convidar a todxs para prestigiarem com sua participação ativa neste evento que conta com a organização do evento é de Magaly Nantes, Bárbara Bismark e Leonardo Bastos.

Pauta:  Casos de homofobia em Coxim e região.
            Parada LGBT/ 2012 em Campo Grande/MS

Venha aprender novas sexualidades!

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Quando crescia (Nellie Wong)


Eu sei agora que alguma vez desejei ser branca.
Como? Perguntas tu.
Deixa-me contar-te as maneiras.

quando crescia, a gente me dizia
que era escura, e eu acreditava em minha obscuridade
no espelho, em minha alma, em minha própria visão estreita

quando crescia, minhas irmãs
de pele branca eram exaltadas
por sua beleza, e na obscuridade
eu caia mais, preocupada entre paredes altas

quando crescia, lia revistas
e via filmes, estrelas loiras do cinema, pele branca,
lábios apaixonados e para ser elevada, para ser
uma mulher, uma desejada, comecei a usar
pele branca imaginária.

quando crescia, estava orgulhosa
de meu inglês, minha gramática, meu soletrar
de pertencer, caber num grupo de meninas inteligentes
inteligentes meninas chinesas, de pertencer,
de ser parte, de estar na fila

quando crescia e fui ao secundário
descobri as garotas brancas ricas,
umas poucas garotas amarelas,

com seus vestidos de algodão importado
com seus suéteres de casimira,
com seu cabelo cacheado e pensei que eu também deveria ter
o que estas garotas afortunadas tinham

quando crescia, me esfomeava
a comida americana, estilos americanos,
senha: estilo branco e até para mim, uma menina
nascida de pais chineses, ser chinesa
era sentir-me estrangeira, era limitante,
era não- norte-americana

quando crescia, me sentia envergonhada
de certos homens amarelos, seus ossos finos,
seus corpos frágeis, seu cuspir
pela rua, sua tosse,
deitados em quartos sem sol,
injetando-se nos braços.

quando crescia, a gente perguntava
se eu era filipina, polinésia, portuguesa.
nomeavam todas as cores menos o branco, a casca
de minha alma, porém não de minha tosca pele escura

quando crescia me sentia
suja. Acreditava que deus
fez limpas as pessoas brancas
e não importava quanto eu me banhasse
não podia trocar, não podia mudar
minha pele em água cinza

quando crescia jurei
que iria  fugir para as montanhas púrpuras,
casas ao lado do mar sem nada sobre
minha cabeça, com espaço para respirar,
não congestionada pela gente amarela da área
chamada o Povochinês, numa área que depois aprendi
era um bairro pobre, um de muitos corações
da ásia-américa

Eu sei agora que alguma vez desejei ser branca.
Quantas maneiras mais? Perguntas tu.
Já não te disse o suficiente?

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A OPRESSÃO DAS MULHERES E DOS ANIMAIS


“Os animais do mundo existem para seus próprios propósitos. Não foram feitos para os seres humanos, do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens.” - Alice Walker

            Os vegetarianos, assim como as feministas, enfrentam o problema de terem seus significados entendidos dentro de uma cultura dominante que aceita a legitimidade à opressão.
            Falar sobre submissão feminina numa sociedade patriarcal é um tanto complicado. Pois, aos olhos da sociedade se é um homem quem reivindica os direitos da mulher, certamente é porque deseja ser uma. Se for uma mulher quem contesta, nem merece ser ouvida. Suas vozes são silenciadas por um sistema patriarcal onde o homem branco heterossexual é quem dita as regras. Todos aqueles que não se enquadram no padrão: negros, homossexuais, trans, mulheres; não merecem atenção.
            Os animais, assim como as mulheres estão à mercê do consumo e posse. Animais são consumidos e mulheres são estupradas. E de quem é a culpa? É da vítima. Uma sociedade machista e insensível onde mulheres são vistas como objeto sexual e animais nascem para ser consumidos – eis o motivo de tanta guerra.
            O machismo afirma que a mulher é estuprada porque usa roupas vulgares ou não se dá valor. O especismo, que nada mais é do que a discriminação baseada na diferença de espécies, afirma que somos superiores aos animais não-humanos, pelo simples fato de sermos humanos. Há o mito de que os homens necessitam de carne. Como o carnivorismo é uma prática masculina, renunciá-la é opor-se ao patriarcado. Além de – no caso dos homens − colocar sua sexualidade em dúvida, já que o ato de comer carne (ou seja, o animal morto) é uma maneira de afirmar a virilidade.
            Apesar de estarmos cansados de saber que animais sentem dor assim como nós, negamo-nos a descobrir toda a verdade à cerca da nossa comida. Afinal, para que serve uma verdade que não nos convém? Não é à toa que o matadouro se encontra tão longe dos nossos olhos.



(Texto de Regiane Arruda, estudante do primeiro ano do Curso Técnico em Informática do IFMS-Coxim)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Abre teu cu e tua mente se abrirá!

Este é um livro sobre o cu, um livro em torno do cu, um livro escrito a partir de dentro do cu. Mas não é um livro que busque alguma verdade sobre o prazer anal, nem é um manual de auto-ajuda anal, nem uma aproximação antropológica nem científica que ofereça um saber para olhares curiosos sobre o “outro”. Não vamos descobrir uma nova tribo para os antropólogos de hoje em dia, nem vamos criar novas taxonomias a serviço de uma sexologia moderna, progressista e até mesmo queer. Não é um livro que tenha esperança numa suposta “liberação” sexual pelo cu, ou que exalte o sexo anal como o natural e o saudável, ou como panacéia de prazer e a felicidade entre os seres. Não vamos pedir que ninguém prometa conosco votos de amor em uma espécie de chakra Muladhara anal que nos levará à iluminação e à paz.  Tampouco é um livro de confissões ou narrações pessoais sobre nossos cus ou sobre aqueles que desejaram estar ali.
Trata-se de ver o que o cu põe em jogo. Ver porque provoca tanto desprezo pelo sexo anal, tanto medo, tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo,  tanto ódio.  E, sobretudo, mostrar que essa vigilância de nossos traseiros não é uniforme: depende se o cu penetrado é branco ou negro, se é o de uma mulher ou de um homem ou o de um/a trans, se no ato se é ativo ou passivo,  se é um cu penetrado por um dildo, um pau ou um punho, se o sujeito penetrado se sente orgulhoso ou envergonhado, se é penetrado com ou sem preservativo, se é um cu rico ou um cu pobre, si é católico ou mulçumano.  Nestas variáveis veremos despregar-se a polícia do cu, e também nelas se articulam a política do cu;  o poder se exerce em rede, é onde se constrói o ódio, o machismo, a homofobia e o racismo.
O cu parece muito democrático, todo mundo tem um. Porém, veremos que nem todo mundo pode fazer o que quiser com seu cu.
Queremos explorar um órgão ou um lugar que desafia a definição atual do que é o sexo e o genital. Não partiremos de uma hipótese repressiva. Seguindo as análises de Foucault em sua História da sexualidade, não acreditamos que exista um poder que reprima o prazer ou o sexo, nem mesmo o sexo anal. A penetração anal já há muito tempo faz parte do dispositivo da sexualidade; hoje em dia, o sexo anal é mostrado com freqüência, está em quase todos os filmes pornôs (hetero e gay), está nas novelas eróticas, nas lojas de brinquedos sexuais, no posporno, nas consultas sexológicas da televisão e da imprensa, está na arte, na fotografia, na pintura... Há numerosos guias didáticos e vídeos sobre o sexo anal.
Não, o sexo anal não é reprimido, ou, ao menos,  não de uma maneira uniforme. Não há unidade no dispositivo repressivo. O que veremos precisamente aqui são as incoerências que existem em torno do cu, em que medida estas contradições questionam o regime heterocentrado e machista em que vivemos, e até que ponto subvertem o dispositivo da sexualidade atual.
Para começar deixaremos um simples exercício a quem estiver lendo este livro: abre teu cu e tua mente se abrirá.
            
 (O texto que você acabou de ler é tradução livre da introdução do livro "Por el culo: políticas anales" de Javier Sáez e Sejo Carrascosa, editorial Egales) Compre aqui:  http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=22446938&sid=8927129441471288987045511                                                      

sábado, 5 de maio de 2012

NÃO SE NASCE MULHER (Texto de Monique Wittig)


NÃO SE NASCE MULHER[i]

Quando se analisa a opressão das mulheres com um enfoque materialista e feminista[ii], se destrói a ideia de que as mulheres são um grupo natural, ou seja, “um grupo racial de um tipo especial: um grupo natural, um grupo de homens considerado como materialmente específico em seus corpos”[iii].  O que a análise consegue ao nível das ideias, a prática torna efetiva ao nível dos fatos: somente por sua simples existência uma sociedade lésbica destrói o fato artificial (social) que constitui as mulheres como “grupo natural”. Uma sociedade lésbica[iv] revela, pragmaticamente, que essa separação dos homens da qual as mulheres têm sido objeto é política, e mostra que temos sido reconstruídas como um “grupo natural”. No caso das mulheres, a ideologia vai longe, já que nossos corpos, assim como nossas mentes, são os produtos dessa manipulação. Em nossas mentes e em nossos corpos nos fazem corresponder, traço a traço, com a ideia de natureza que tem sido estabelecida para nós. Somos manipuladas até o ponto em que nosso corpo deformado é o que chamam “natural”, o que supostamente existia antes da opressão; tão manipuladas que finalmente a opressão parece ser uma conseqüência desta “natureza” que está dentro de nós mesmas (uma natureza que  é somente uma ideia).  O que uma análise materialista faz por meio do raciocínio, uma sociedade lésbica o realiza de fato: não só não existe o grupo natural “mulheres” (nós, as lésbicas, somos a prova disso), mas, como indivíduos, também questionamos “a mulher”, algo que, para nós – como para Simone de Beauvoir - é somente um mito. Ela afirmou: “não se nasce mulher, torna-se. Não há nenhum destino biológico, psicológico ou econômico que determine o papel que as mulheres representam na sociedade: é a civilização como um todo que produz essa criatura intermediária entre o macho e o eunuco, que é qualificada como feminina”[v].
Contudo, a maioria das feministas e das lésbicas/feministas na América do Norte e em outros lugares ainda consideram que a base da opressão das mulheres é biológica e histórica. Algumas delas pretendem encontrar suas raízes em Simone de Beauvoir[vi]. A crença em um direito materno e em uma “pré-história” na qual as mulheres haveriam criado a civilização (devido a uma predisposição biológica) é simétrica à interpretação biologizante da história que tem sido feita, até hoje, pela classe dos homens. É o mesmo método que consiste em buscar nos homens e nas mulheres uma razão biológica para explicar sua divisão, excluindo os fatos sociais. Para mim,  isto nunca poderá constituir um ponto de partida para uma análise lésbica da opressão das mulheres, porque se pressupõe que a base ou a origem da sociedade humana está fundamentada necessariamente na heterossexualidade. O matriarcado não é menos heterossexual que o patriarcado: somente se muda o sexo do opressor. Ademais, esta concepção não somente segue assumindo as categorias de sexo (mulher e homem), como acaba mantendo a ideia de que a capacidade de dar a luz (ou seja, a biologia) é o que define a mulher.  E, ainda que numa sociedade lésbica os fatos e as formas de vida contradigam esta teoria,  há lésbicas que afirmam que “as mulheres e os homens pertencem a raças ou espécies (as duas palavras são utilizadas de forma intercambiável) distintas: os homens são biologicamente inferiores às mulheres;  a violência dos homens é um fenômeno biológico inevitável”[vii]. Ao fazer isto,  ao admitir que há uma divisão “natural” entre mulheres e homens, naturalizamos a história, assumimos que “homens” e “mulheres” sempre existiram e sempre existirão. Não somente naturalizamos a história como também, por conseqüência,  naturalizamos os fenômenos sociais que manifestam nossa opressão, tornando impossível qualquer mudança. Por exemplo,  não se considera a gravidez como uma produção forçada, mas como um processo “natural”, “biológico”, esquecendo que em nossas sociedades a natalidade é planificada (demografia), esquecendo que nós mesmas somos programadas para produzir crianças, mesmo que esta seja a única atividade social, “a exceção da guerra”,  que implica tanto perigo de morte[viii]. Enquanto formos “incapazes de abandonar, por vontade ou espontaneamente, a obrigação secular de procriar que as mulheres assumem como o ato criador feminino”[ix], o controle sobre essa produção de crianças significará muito mais que o simples controle dos meios materiais da referida produção. Para ganhar este controle as mulheres teriam que abstraírem-se da definição “a mulher”que lhes é imposta.
Uma análise feminista materialista mostra que aquilo que nós consideramos causa e origem da opressão é somente a “marca”[x] que o opressor impõe sobre os oprimidos: o “mito da mulher”[xi] com suas manifestações e efeitos materiais nas consciências e nos corpos apropriados das mulheres. A marca não pré-existe a opressão: Colette Guillaumin demonstrou que, antes da realidade socioeconômica da escravidão negra, o conceito de raça não existia, ou, pelo menos, não tinha seu significado moderno, pois designava a linhagem das famílias. Contudo, hoje, noções como raça e sexo são entendidas como um  “dado imediato”, “sensível”, um conjunto de “características físicas”, que pertencem a uma ordem natural. Mas, o que cremos ser uma percepção direta e física, não passa de uma construção sofisticada e mística, uma “formação imaginária”[xii] que reinterpreta traços físicos (em si mesmos tão neutros como qualquer outros, mas marcados pelo sistema social) por meio da rede de relações com as quais eles mesmos são percebidos. (Elas são vistas como negras, por isso são negras, elas são vistas como mulheres, por isso são mulheres. Não obstante, antes que sejam vistas desta maneira, elas tiveram que ser feitas desta maneira.). Ter uma consciência lésbica supõe nunca esquecer até que ponto ser “a-mulher” era para nós algo “contra natura”, algo limitador, totalmente opressivo e destrutivo  nos velhos tempos anteriores ao movimento de liberação das mulheres. Era uma constrição política e aquelas que resistiam eram acusadas de não ser “verdadeiras”mulheres. Porém estávamos orgulhosas disso, porque na acusação havia já  como uma sombra de triunfo: o reconhecimento, pelo opressor, de que “mulher”não é um conceito tão simples, porque para ser uma, era necessário ser uma “verdadeira”.  Ao mesmo tempo, éramos acusadas de querer ser homens. Hoje, esta dupla acusação tem sido retomada com entusiasmos no contexto do movimento de liberação das mulheres, por algumas feministas e também, por desgraça, por algumas lésbicas cujo objetivo político parece ser tornarem-se cada vez mais “femininas”. Porém, negar-se a ser uma mulher, contudo, não significa ter que ser um homem. Ademais,  se tomarmos como exemplo a perfeita “butch”[xiii] – o exemplo clássico que provoca mais horror, ao qual Proust chamou de mulher/homem – em que difere a sua alienação daquela de alguém que quer se tornar mulher? Tal qual. Ao menos, para uma mulher, querer ser um homem significa que se escapou de sua programação inicial. Entretanto, ainda que desejasse com todas as suas forças, não poderia chegar a ser um homem, porque isso lhe exigiria não somente ter uma aparência externa de homem, mas também ter uma consciência de homem, ou seja,  a consciência de alguém que dispõe, por direito, de dois - senão mais – escravos “naturais”durante a vida. Isto é impossível, uma das características da opressão das lésbicas consiste, precisamente em que colocamos as mulheres fora de nosso alcance, já que as mulheres pertencem aos homens. Assim, uma lésbica deve ser qualquer outra coisa, uma não-mulher, um não-homem, um produto da sociedade e não da “natureza”, porque não há “natureza”na sociedade.
                           ______________________________________
            Rejeitar converter-se em heterossexual (ou manter-se como tal) sempre significou, conscientemente ou não, negar-se a converter-se numa mulher, ou num homem. Para uma lésbica isso vai mais longe do que a mera rejeição do papel de “mulher”. É a rejeição do poder econômico, ideológico e político de um homem.  Isto, nós lésbicas, e também muitas que não o eram, já o sabiamos antes do movimento feminista e lésbico. Contudo, como assinala Andrea Dworkin, muitas lésbicas recentemente “tentaram transformar cada vez mais a própria ideologia que nos escravizou em uma celebração dinâmica, religiosa, psicologicamente coercitiva do potencial biológico feminino”[xiv]. Deste modo, algumas tendências do movimento feminista e lésbico conduzem novamente ao mito da mulher que havia sido criado especialmente para nós pelos homens, e com ele voltamos a cair em um grupo natural. Nos levantamos para lutar por uma sociedade sem sexos[xv]; agora nos encontramos presas na armadilha familiar de que “ser mulher é maravilhoso”. Simone de Beauvoir apontou precisamente a falsa consciência que consiste em selecionar dentre as características do mito (que as mulheres são diferentes dos homens) aquelas que parecem agradáveis, e utilizá-las para definir as mulheres. Utilizar isso de que “é maravilhoso ser mulher”, supõe assumir, para definir as mulheres, os melhores traços (melhores em relação a quem?) que a opressão nos tem assinalado, e que supõe não questionar radicalmente as categorias “homem” e “mulher”, que são categorias políticas (e não dados naturais). Isto nos leva a lutar dentro da classe “mulheres”, não como fazem as outras classes, pela desaparição de nossa classe, mas pela defesa da “mulher”e seu fortalecimento. Isso não nos conduz a desenvolver com complacência “novas” teorias sobre nossa especificidade: assim, chamamos a nossa passividade de “não-violência”, quando nossa luta mais importante e emergente é combater a nossa passividade (nosso medo, que está justificado). A ambiguidade da palavra “feminista” resume toda a situação. O que significa “feminista”? Feminismo contém a palavra “femina” (“mulher”), e significa: alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nós, significa alguém que luta pelas mulheres como classe e pela desaparecimento dessa classe. Para muitas outras, isto quer dizer alguém que luta pela mulher e pela sua defesa – pelo mito, portanto, e seu fortalecimento.
Mas, por que foi escolhida a palavra “feminista” se é tão ambígua? Escolhemos chamarmo-nos “feminista” faz dez anos, não para apoiar ou fortalecer o mito da mulher, nem para identificarmo-nos com a definição que o opressor faz de nós, mas para afirmar que nosso movimento tem uma história e para sublinhar o laço político com o primeiro movimento feminista.
É este o movimento que é preciso colocar em questão, pelo significado que é dado à palavra feminismo. O feminismo do século passado nunca foi capaz de solucionar suas contradições em assuntos como natureza/cultura, mulher/sociedade. As mulheres começaram a lutar por si mesmas como um grupo e consideraram acertadamente que compartilhavam aspectos de opressões comuns. Mas, para elas, estes aspectos eram naturais e biológicos, e não traços sociais. Chegaram ao ponto de adotar a teoria darwinista da evolução. Não acreditavam, como Darwin, “que as mulheres estavam menos evoluídas que os homens, mas acreditavam que a natureza tanto dos homens quanto das mulheres havia divergido no curso do processo evolutivo e que a sociedade em geral refletia a essa polarização”[xvi]. “O fracasso do primeiro feminismo provem do fato de que só atacaram a ideia darwinista da inferioridade da mulher, mas aceitaram os fundamentos dessa ideia, ou seja, a visão da mulher como “única””[xvii]. E, finalmente, foram as mulheres universitárias – e não as feministas – que acabaram cientificamente com essa teoria. As primeiras feministas não lograram olhar para a história como um processo dinâmico que se desenvolve pelos conflitos de interesse. Elas ainda acreditavam, como os homens, que a causa (origem) de sua opressão se encontrava nelas. E, depois de alguns triunfos, as feministas dessa primeira onda se encontraram em frente a um beco sem saída, sem razões para continuar lutando. Elas sustentavam o princípio ilógico da igualdade na diferença, uma ideia que hoje está renascendo. Caíram na armadilha que hoje nos ameaça outra vez: o mito da “mulher”.
É nossa tarefa histórica, somente nossa, definir em termos materialistas o que chamamos opressão, analisar as mulheres como classe, o que equivale a categoria “mulher” e a categoria “homem”, são categorias políticas e econômicas, portanto, não são eternas. Nossa luta intenciona fazer desaparecer os homens enquanto classe, não como um genocídio, mas como uma luta política. Quando a classe dos “homens” tiver desaparecido, as mulheres como classe desaparecerão também, porque não haverá escravos sem senhores. Nossa primeira tarefa, me parece, é sempre tratar de distinguir cuidadosamente entre as “mulheres” (a classe da qual lutamos) e “a-mulher”, o mito. Porque a “mulher” não existe para nós: é somente uma formação imaginária, enquanto que as “mulheres” são o produto de uma relação social. Sentimos isto claramente quando não aceitamos que nos chamassem “movimento de liberação da mulher[xviii]. Mais ainda, temos que destruir o mito dentro e fora de nós mesmas. A “mulher” não é cada uma de nós, mas uma construção política e ideológica que nega a “as mulheres” (o produto de uma relação de exploração). “A mulher” existe para nos confundir, para ocultar a realidade “das mulheres”. Para chegar a ser uma classe, para ter uma consciência de classe, temos primeiro que matar o mito “da mulher”, incluindo os seus traços mais sedutores (penso em Virgínia Wolf quando dizia que a primeira tarefa de uma mulher escritora é “matar o anjo do lar”). Mas constituir-se como classe não significa que devamos nos suprimir como individuo. Já que nenhum indivíduo pode ser reduzido a sua opressão, nos vemos também confrontadas com a necessidade histórica de  nos construir como sujeitos individuais em nossa história. Creio que esta é a razão pela qual estão proliferando agora todas estas tentativas de dar “novas” definições à mulher. O que está em jogo (não somente para as mulheres) é uma definição de individuo, assim como uma definição de classe. Porque, quando se admite a opressão, se faz necessário saber e experimentar o fato de que alguma pode constituir-se em sujeito (como o contrário, em objeto de opressão), que alguma pode converter-se em alguém apesar da opressão, que alguma tem sua própria identidade. Não há luta possível para alguém privado de uma identidade; carece de uma motivação interna para lutar, porque, ainda que eu só possa lutar com os outros, primeiro luto por mim mesma.
A questão do sujeito individual tem sido historicamente uma questão difícil. O marxismo, último avatar do materialismo, a ciência que nos formou politicamente, nada quer saber sobre o “sujeito”. O marxismo rejeitou o sujeito transcendental, a “pura” consciência, o sujeito “em si” como constitutivo do conhecimento. Tudo o que pensa “em si”, previamente a qualquer experiência, acabou na lixeira da história; tudo o que pretendia existir por cima da matéria, antes da matéria, necessitava um deus, um espírito, ou uma alma para existir. Isto se chama idealismo. Quanto aos indivíduos, eles são somente o produto de relações sociais e, por isso, sua consciência só pode estar “alienada”. (Marx, em A Ideologia Alemã, disse, precisamente, que os indivíduos da classe dominante também estão alienados, mesmo que sejam eles os produtores diretos das ideias que alienam as classes por eles oprimidas. Porém, como retiram óbvias vantagens de sua própria alienação, podem suportá-la sem muito sofrimento). A consciência de classe existe, mas é uma consciência que não se refere a um sujeito em particular, salvo quando participa das condições gerais de exploração ao mesmo tempo que os outros sujeitos de sua classe, que compartilham todos a mesma consciência. Quanto aos problemas práticos de classe – fora os problemas definidos tradicionalmente como de classe – que podemos encontrar (por exemplo, os problemas chamados sexuais), foram considerados problemas “burgueses” que desapareceriam com o triunfo final da luta de classes. “Individualista”, “subjetivista”, “pequeno-burguês”, estas foram as etiquetas que se aplicaram a qualquer pessoa que expressasse problemas que não podiam reduzir-se aos da “luta de classes” propriamente dita.
O marxismo negou aos integrantes das classes oprimidas o atributo de sujeitos. Ao fazer isso, o marxismo, a causa do poder político e ideológico que esta “ciência revolucionária” teve imediatamente sobre o movimento operário e os outros grupos políticos, impediu a todas as categorias das pessoas oprimidas que se constituíam historicamente como sujeitos (como sujeitos de suas lutas, por exemplo). Isto significa que as “massas” não lutavam por elas mesmas, mas pelo (o) partido ou suas organizações. E quando uma transformação econômica teve lugar (finda a propriedade privada, constituição do estado socialista), nenhuma mudança revolucionária teve lugar na nova sociedade, porque as próprias pessoas não haviam mudado.
Para as mulheres, o marxismo teve duas consequências. Tornou impossível que tomassem consciência de que eram uma classe e, portanto, as impediu de constituírem-se como classe durante muito tempo, deixando a relação “mulher/homem” fora da ordem social, fazendo dela uma relação “natural” – sem dúvida, a única relação vista dessa maneira pelos marxistas, junto com a relação entre mulheres e filhos – , e ocultando, finalmente, o conflito de classe entre homens e mulheres através de uma divisão natural do trabalho (A Ideologia Alemã). Isto no que se refere ao nível teórico (ideológico). Na prática, Lenin, o partido, todos os partidos comunistas até hoje, incluindo a todos os grupos políticos mais radicais, sempre reagiram contra qualquer tentativa das mulheres de refletir e formar grupos baseados em seu próprio problema de classe, com acusações de divisionismo. Ao unirmo-nos, nós, as mulheres, dividimos a força do povo. Isto significa que, para os marxistas, as mulheres pertencem, seja a classe burguesa ou a classe operária, aos homens dessas classes. Mais ainda, a teoria marxista não permite às mulheres, como à outras classes de pessoas oprimidas, que se constituam como sujeitos históricos, porque o marxismo não leva em conta que uma classe também consiste em indivíduos, um por um. A consciência de classe não é suficiente. Temos que tentar entender filosoficamente (politicamente) estes conceitos de “sujeito” e “consciência de classe” e como funcionam em relação a nossa história. Quando descobrimos que as mulheres são objeto de opressão e apropriação, no momento exato que somos capazes de reconhecer isso, nos convertemos em sujeitos em sentido de sujeitos cognitivos, por meio de uma operação de abstração. A consciência da opressão não é somente uma reação (uma luta) contra a opressão: supõe também uma total reavaliação conceitual do mundo social, sua total reorganização com novos conceitos, desenvolvidos a partir do ponto de vista da opressão. É o que eu chamaria de ciência da opressão, criada pelos oprimidos. Esta operação de entender a realidade tem que ser empreendida por cada uma de nós: designamo-las de práticas subjetivas, cognitivas. Este movimento de ir e vir entre os dois níveis da realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão, que são, ambas, realidades sociais) se conquista através da linguagem.
            Somos nós mesmas que historicamente temos que realizar esta tarefa de definir o que é um sujeito individual em termos materialistas. Isto parece ser impossível, porque o materialismo e a subjetividade sempre foram vistos como coisas excludentes. Longe de nos desesperarmos, por não entendê-lo, temos que compreender o abandono por muitas de nós do mito da “Mulher” (que é somente uma miragem que nos distrai em nosso caminho); ele se explica pela necessidade que cada ser humano tem de existir como indivíduo, e também como membro de uma classe. Esta talvez seja a primeira condição para que se consuma a revolução que desejamos, sem a qual não há luta real ou transformação. Mas, paralelamente, sem classe nem consciência de classe não há verdadeiros sujeitos, somente indivíduos alienados. Para as mulheres, responder ao questionamento acerca do sujeito individual em termos materialistas consiste,  em primeiro lugar,  em mostrar, como o fizeram as feministas e as lésbicas, que os problemas supostamente subjetivos, “individuais” e “privados” são, de fato, problemas sociais, problemas de classe; que a sexualidade não é, para as mulheres,  uma expressão individual e subjetiva, mas uma instituição social e violenta. Porém, uma vez que tenhamos mostrado que todos os nossos problemas supostamente pessoais são, de fato, problemas de classe, ainda nos faltará responder ao problema do sujeito de cada mulher, tomada separadamente;  não o mito, mas cada uma de nós. Neste ponto, creio que somente mais além das categorias de sexo (mulher e homem) pode encontrar-se uma nova e subjetiva definição de pessoa e de sujeito para toda a humanidade, e que o surgimento de sujeitos individuais exige destruir primeiro as categorias de sexo, eliminando seu uso,  e rejeitando todas as ciências que ainda utilizam tais categorias como seu fundamento (praticamente todas as ciências humanas).
Porém, destruir “a mulher” não significa que nosso propósito seja a destruição física do lesbianismo simultaneamente com a categoria de sexo, porque o lesbianismo oferece, de momento, a única forma social na qual podemos viver livremente. Além disso, lésbica é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lésbica) não é uma mulher nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. O que constitui uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que temos chamado de servidão, uma relação que implica obrigações pessoais e físicas e também econômicas (“a determinação de uma residência fixa”[xix], trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação da qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornarem-se ou continuar sendo heterossexuais. Somos desertoras de nossa classe, como foram os escravos americanos fugitivos quando escapavam da escravidão e se tornavam livres. Para nós, esta é uma necessidade absoluta; nossa sobrevivência exige que nos dediquemos com todas  as nossas forças a destruir essa classe – as mulheres-  com a qual os homens se apropriam das mulheres.  Isto só pode ser alcançado por meio da destruição da heterossexualidade como um sistema social baseado na opressão das mulheres e dos homens, um sistema que produz o corpo de doutrinas da diferença entre os sexos para justificar esta opressão.


[i] Texto publicado pela primeira vez em Femist Issues 1, n 2 (inverno 1981). Este texto não foi traduzido diretamente do idioma no qual foi escrito. Como não dispúnhamos do texto na língua original e precisávamos difundi-lo entre as pessoas do grupo, muitas das quais não se sentem aptas a realizar uma leitura em língua espanhola, acabamos por nos valer da tradução espanhola feita por Javier Sáez e Paco Vidarte. Trata-se de uma tradução de tradução, por tanto, todo cuidado é pouco. Referência:WITTIG, M. El pensamiento heterosexual y otros ensaios. Madrid: EGALES, 2006.
[ii] DELPHY, C.: “Por um feminism materialista”, L’Arc, n 6, 1975. Artigo recolhido em L’ennemi principal, tomo 1, Paris, Syllepse, 1998.
[iii] GULLAUMIN, C.: “Raça E natureza: sistema de marcas, ideias de grupos naturais e relações sociais”, Pluriel, n 11, 1997. Artigo disponível em Sexo, raça e Prática de poder, Paris, Côte-femmes, 1992.
[iv] Utilizo o termo “sociedade”em um sentido antropológico amplo, pois falando propriamente não se trata  de “sociedades”, dado que as sociedades lésbicas não existem de forma completamente autônoma, a margem dos sistemas sociais heterossexuais.
[v] DE BEAUVOIR, S.: O Segundo sexo. México, Alianza?Siglo XXI, 1989, p.240.
[vi] Redstockings: Feminist Revolution, New York, Random House, 1978, p.18.
[vii] DWORIN, A.: “Biological Superiority, The World’s Most Dangerous and Deadly idea”, Heresies, 6: 46.
[viii] ATKINSON, T-G.:  Amazon Odyssey, New York, links Boojs, 1974, p.15.
[ix] DWORKIN, A. Ibidem.
[x] GUILLAUMIN,C.: Ibidem.
[xi] DE BEAUVOIR, S.: Ibidem.
[xii] GUILLAUMIN, C.: Ibidem.
[xiii] Lésbica hipermasculina. (N. dos T.)
[xiv] DWORKIN,A.: Ibidem.
[xv] ATKISON, T-G.:  Ibidem, p.6: “Se o feminismo quer ser lógico, deve trabalhar para obter uma sociedade sem sexo”.
[xvi] ROSENBERG, R.: “In Search of Woman’s Nature”, Feminist Studiesm otoño, 1975, p.144.
[xvii] Ibidem, p.146.
[xviii] Em um artigo publicado em L’Idiote Internationale (maio 1990), cujo o título original era “por um movimento de liberação das mulheres”.
[xix] ROCHEFORT, C.: Les stances à Sophie. Paris, Grasset, 1963.