Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

sábado, 5 de maio de 2012

NÃO SE NASCE MULHER (Texto de Monique Wittig)


NÃO SE NASCE MULHER[i]

Quando se analisa a opressão das mulheres com um enfoque materialista e feminista[ii], se destrói a ideia de que as mulheres são um grupo natural, ou seja, “um grupo racial de um tipo especial: um grupo natural, um grupo de homens considerado como materialmente específico em seus corpos”[iii].  O que a análise consegue ao nível das ideias, a prática torna efetiva ao nível dos fatos: somente por sua simples existência uma sociedade lésbica destrói o fato artificial (social) que constitui as mulheres como “grupo natural”. Uma sociedade lésbica[iv] revela, pragmaticamente, que essa separação dos homens da qual as mulheres têm sido objeto é política, e mostra que temos sido reconstruídas como um “grupo natural”. No caso das mulheres, a ideologia vai longe, já que nossos corpos, assim como nossas mentes, são os produtos dessa manipulação. Em nossas mentes e em nossos corpos nos fazem corresponder, traço a traço, com a ideia de natureza que tem sido estabelecida para nós. Somos manipuladas até o ponto em que nosso corpo deformado é o que chamam “natural”, o que supostamente existia antes da opressão; tão manipuladas que finalmente a opressão parece ser uma conseqüência desta “natureza” que está dentro de nós mesmas (uma natureza que  é somente uma ideia).  O que uma análise materialista faz por meio do raciocínio, uma sociedade lésbica o realiza de fato: não só não existe o grupo natural “mulheres” (nós, as lésbicas, somos a prova disso), mas, como indivíduos, também questionamos “a mulher”, algo que, para nós – como para Simone de Beauvoir - é somente um mito. Ela afirmou: “não se nasce mulher, torna-se. Não há nenhum destino biológico, psicológico ou econômico que determine o papel que as mulheres representam na sociedade: é a civilização como um todo que produz essa criatura intermediária entre o macho e o eunuco, que é qualificada como feminina”[v].
Contudo, a maioria das feministas e das lésbicas/feministas na América do Norte e em outros lugares ainda consideram que a base da opressão das mulheres é biológica e histórica. Algumas delas pretendem encontrar suas raízes em Simone de Beauvoir[vi]. A crença em um direito materno e em uma “pré-história” na qual as mulheres haveriam criado a civilização (devido a uma predisposição biológica) é simétrica à interpretação biologizante da história que tem sido feita, até hoje, pela classe dos homens. É o mesmo método que consiste em buscar nos homens e nas mulheres uma razão biológica para explicar sua divisão, excluindo os fatos sociais. Para mim,  isto nunca poderá constituir um ponto de partida para uma análise lésbica da opressão das mulheres, porque se pressupõe que a base ou a origem da sociedade humana está fundamentada necessariamente na heterossexualidade. O matriarcado não é menos heterossexual que o patriarcado: somente se muda o sexo do opressor. Ademais, esta concepção não somente segue assumindo as categorias de sexo (mulher e homem), como acaba mantendo a ideia de que a capacidade de dar a luz (ou seja, a biologia) é o que define a mulher.  E, ainda que numa sociedade lésbica os fatos e as formas de vida contradigam esta teoria,  há lésbicas que afirmam que “as mulheres e os homens pertencem a raças ou espécies (as duas palavras são utilizadas de forma intercambiável) distintas: os homens são biologicamente inferiores às mulheres;  a violência dos homens é um fenômeno biológico inevitável”[vii]. Ao fazer isto,  ao admitir que há uma divisão “natural” entre mulheres e homens, naturalizamos a história, assumimos que “homens” e “mulheres” sempre existiram e sempre existirão. Não somente naturalizamos a história como também, por conseqüência,  naturalizamos os fenômenos sociais que manifestam nossa opressão, tornando impossível qualquer mudança. Por exemplo,  não se considera a gravidez como uma produção forçada, mas como um processo “natural”, “biológico”, esquecendo que em nossas sociedades a natalidade é planificada (demografia), esquecendo que nós mesmas somos programadas para produzir crianças, mesmo que esta seja a única atividade social, “a exceção da guerra”,  que implica tanto perigo de morte[viii]. Enquanto formos “incapazes de abandonar, por vontade ou espontaneamente, a obrigação secular de procriar que as mulheres assumem como o ato criador feminino”[ix], o controle sobre essa produção de crianças significará muito mais que o simples controle dos meios materiais da referida produção. Para ganhar este controle as mulheres teriam que abstraírem-se da definição “a mulher”que lhes é imposta.
Uma análise feminista materialista mostra que aquilo que nós consideramos causa e origem da opressão é somente a “marca”[x] que o opressor impõe sobre os oprimidos: o “mito da mulher”[xi] com suas manifestações e efeitos materiais nas consciências e nos corpos apropriados das mulheres. A marca não pré-existe a opressão: Colette Guillaumin demonstrou que, antes da realidade socioeconômica da escravidão negra, o conceito de raça não existia, ou, pelo menos, não tinha seu significado moderno, pois designava a linhagem das famílias. Contudo, hoje, noções como raça e sexo são entendidas como um  “dado imediato”, “sensível”, um conjunto de “características físicas”, que pertencem a uma ordem natural. Mas, o que cremos ser uma percepção direta e física, não passa de uma construção sofisticada e mística, uma “formação imaginária”[xii] que reinterpreta traços físicos (em si mesmos tão neutros como qualquer outros, mas marcados pelo sistema social) por meio da rede de relações com as quais eles mesmos são percebidos. (Elas são vistas como negras, por isso são negras, elas são vistas como mulheres, por isso são mulheres. Não obstante, antes que sejam vistas desta maneira, elas tiveram que ser feitas desta maneira.). Ter uma consciência lésbica supõe nunca esquecer até que ponto ser “a-mulher” era para nós algo “contra natura”, algo limitador, totalmente opressivo e destrutivo  nos velhos tempos anteriores ao movimento de liberação das mulheres. Era uma constrição política e aquelas que resistiam eram acusadas de não ser “verdadeiras”mulheres. Porém estávamos orgulhosas disso, porque na acusação havia já  como uma sombra de triunfo: o reconhecimento, pelo opressor, de que “mulher”não é um conceito tão simples, porque para ser uma, era necessário ser uma “verdadeira”.  Ao mesmo tempo, éramos acusadas de querer ser homens. Hoje, esta dupla acusação tem sido retomada com entusiasmos no contexto do movimento de liberação das mulheres, por algumas feministas e também, por desgraça, por algumas lésbicas cujo objetivo político parece ser tornarem-se cada vez mais “femininas”. Porém, negar-se a ser uma mulher, contudo, não significa ter que ser um homem. Ademais,  se tomarmos como exemplo a perfeita “butch”[xiii] – o exemplo clássico que provoca mais horror, ao qual Proust chamou de mulher/homem – em que difere a sua alienação daquela de alguém que quer se tornar mulher? Tal qual. Ao menos, para uma mulher, querer ser um homem significa que se escapou de sua programação inicial. Entretanto, ainda que desejasse com todas as suas forças, não poderia chegar a ser um homem, porque isso lhe exigiria não somente ter uma aparência externa de homem, mas também ter uma consciência de homem, ou seja,  a consciência de alguém que dispõe, por direito, de dois - senão mais – escravos “naturais”durante a vida. Isto é impossível, uma das características da opressão das lésbicas consiste, precisamente em que colocamos as mulheres fora de nosso alcance, já que as mulheres pertencem aos homens. Assim, uma lésbica deve ser qualquer outra coisa, uma não-mulher, um não-homem, um produto da sociedade e não da “natureza”, porque não há “natureza”na sociedade.
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            Rejeitar converter-se em heterossexual (ou manter-se como tal) sempre significou, conscientemente ou não, negar-se a converter-se numa mulher, ou num homem. Para uma lésbica isso vai mais longe do que a mera rejeição do papel de “mulher”. É a rejeição do poder econômico, ideológico e político de um homem.  Isto, nós lésbicas, e também muitas que não o eram, já o sabiamos antes do movimento feminista e lésbico. Contudo, como assinala Andrea Dworkin, muitas lésbicas recentemente “tentaram transformar cada vez mais a própria ideologia que nos escravizou em uma celebração dinâmica, religiosa, psicologicamente coercitiva do potencial biológico feminino”[xiv]. Deste modo, algumas tendências do movimento feminista e lésbico conduzem novamente ao mito da mulher que havia sido criado especialmente para nós pelos homens, e com ele voltamos a cair em um grupo natural. Nos levantamos para lutar por uma sociedade sem sexos[xv]; agora nos encontramos presas na armadilha familiar de que “ser mulher é maravilhoso”. Simone de Beauvoir apontou precisamente a falsa consciência que consiste em selecionar dentre as características do mito (que as mulheres são diferentes dos homens) aquelas que parecem agradáveis, e utilizá-las para definir as mulheres. Utilizar isso de que “é maravilhoso ser mulher”, supõe assumir, para definir as mulheres, os melhores traços (melhores em relação a quem?) que a opressão nos tem assinalado, e que supõe não questionar radicalmente as categorias “homem” e “mulher”, que são categorias políticas (e não dados naturais). Isto nos leva a lutar dentro da classe “mulheres”, não como fazem as outras classes, pela desaparição de nossa classe, mas pela defesa da “mulher”e seu fortalecimento. Isso não nos conduz a desenvolver com complacência “novas” teorias sobre nossa especificidade: assim, chamamos a nossa passividade de “não-violência”, quando nossa luta mais importante e emergente é combater a nossa passividade (nosso medo, que está justificado). A ambiguidade da palavra “feminista” resume toda a situação. O que significa “feminista”? Feminismo contém a palavra “femina” (“mulher”), e significa: alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nós, significa alguém que luta pelas mulheres como classe e pela desaparecimento dessa classe. Para muitas outras, isto quer dizer alguém que luta pela mulher e pela sua defesa – pelo mito, portanto, e seu fortalecimento.
Mas, por que foi escolhida a palavra “feminista” se é tão ambígua? Escolhemos chamarmo-nos “feminista” faz dez anos, não para apoiar ou fortalecer o mito da mulher, nem para identificarmo-nos com a definição que o opressor faz de nós, mas para afirmar que nosso movimento tem uma história e para sublinhar o laço político com o primeiro movimento feminista.
É este o movimento que é preciso colocar em questão, pelo significado que é dado à palavra feminismo. O feminismo do século passado nunca foi capaz de solucionar suas contradições em assuntos como natureza/cultura, mulher/sociedade. As mulheres começaram a lutar por si mesmas como um grupo e consideraram acertadamente que compartilhavam aspectos de opressões comuns. Mas, para elas, estes aspectos eram naturais e biológicos, e não traços sociais. Chegaram ao ponto de adotar a teoria darwinista da evolução. Não acreditavam, como Darwin, “que as mulheres estavam menos evoluídas que os homens, mas acreditavam que a natureza tanto dos homens quanto das mulheres havia divergido no curso do processo evolutivo e que a sociedade em geral refletia a essa polarização”[xvi]. “O fracasso do primeiro feminismo provem do fato de que só atacaram a ideia darwinista da inferioridade da mulher, mas aceitaram os fundamentos dessa ideia, ou seja, a visão da mulher como “única””[xvii]. E, finalmente, foram as mulheres universitárias – e não as feministas – que acabaram cientificamente com essa teoria. As primeiras feministas não lograram olhar para a história como um processo dinâmico que se desenvolve pelos conflitos de interesse. Elas ainda acreditavam, como os homens, que a causa (origem) de sua opressão se encontrava nelas. E, depois de alguns triunfos, as feministas dessa primeira onda se encontraram em frente a um beco sem saída, sem razões para continuar lutando. Elas sustentavam o princípio ilógico da igualdade na diferença, uma ideia que hoje está renascendo. Caíram na armadilha que hoje nos ameaça outra vez: o mito da “mulher”.
É nossa tarefa histórica, somente nossa, definir em termos materialistas o que chamamos opressão, analisar as mulheres como classe, o que equivale a categoria “mulher” e a categoria “homem”, são categorias políticas e econômicas, portanto, não são eternas. Nossa luta intenciona fazer desaparecer os homens enquanto classe, não como um genocídio, mas como uma luta política. Quando a classe dos “homens” tiver desaparecido, as mulheres como classe desaparecerão também, porque não haverá escravos sem senhores. Nossa primeira tarefa, me parece, é sempre tratar de distinguir cuidadosamente entre as “mulheres” (a classe da qual lutamos) e “a-mulher”, o mito. Porque a “mulher” não existe para nós: é somente uma formação imaginária, enquanto que as “mulheres” são o produto de uma relação social. Sentimos isto claramente quando não aceitamos que nos chamassem “movimento de liberação da mulher[xviii]. Mais ainda, temos que destruir o mito dentro e fora de nós mesmas. A “mulher” não é cada uma de nós, mas uma construção política e ideológica que nega a “as mulheres” (o produto de uma relação de exploração). “A mulher” existe para nos confundir, para ocultar a realidade “das mulheres”. Para chegar a ser uma classe, para ter uma consciência de classe, temos primeiro que matar o mito “da mulher”, incluindo os seus traços mais sedutores (penso em Virgínia Wolf quando dizia que a primeira tarefa de uma mulher escritora é “matar o anjo do lar”). Mas constituir-se como classe não significa que devamos nos suprimir como individuo. Já que nenhum indivíduo pode ser reduzido a sua opressão, nos vemos também confrontadas com a necessidade histórica de  nos construir como sujeitos individuais em nossa história. Creio que esta é a razão pela qual estão proliferando agora todas estas tentativas de dar “novas” definições à mulher. O que está em jogo (não somente para as mulheres) é uma definição de individuo, assim como uma definição de classe. Porque, quando se admite a opressão, se faz necessário saber e experimentar o fato de que alguma pode constituir-se em sujeito (como o contrário, em objeto de opressão), que alguma pode converter-se em alguém apesar da opressão, que alguma tem sua própria identidade. Não há luta possível para alguém privado de uma identidade; carece de uma motivação interna para lutar, porque, ainda que eu só possa lutar com os outros, primeiro luto por mim mesma.
A questão do sujeito individual tem sido historicamente uma questão difícil. O marxismo, último avatar do materialismo, a ciência que nos formou politicamente, nada quer saber sobre o “sujeito”. O marxismo rejeitou o sujeito transcendental, a “pura” consciência, o sujeito “em si” como constitutivo do conhecimento. Tudo o que pensa “em si”, previamente a qualquer experiência, acabou na lixeira da história; tudo o que pretendia existir por cima da matéria, antes da matéria, necessitava um deus, um espírito, ou uma alma para existir. Isto se chama idealismo. Quanto aos indivíduos, eles são somente o produto de relações sociais e, por isso, sua consciência só pode estar “alienada”. (Marx, em A Ideologia Alemã, disse, precisamente, que os indivíduos da classe dominante também estão alienados, mesmo que sejam eles os produtores diretos das ideias que alienam as classes por eles oprimidas. Porém, como retiram óbvias vantagens de sua própria alienação, podem suportá-la sem muito sofrimento). A consciência de classe existe, mas é uma consciência que não se refere a um sujeito em particular, salvo quando participa das condições gerais de exploração ao mesmo tempo que os outros sujeitos de sua classe, que compartilham todos a mesma consciência. Quanto aos problemas práticos de classe – fora os problemas definidos tradicionalmente como de classe – que podemos encontrar (por exemplo, os problemas chamados sexuais), foram considerados problemas “burgueses” que desapareceriam com o triunfo final da luta de classes. “Individualista”, “subjetivista”, “pequeno-burguês”, estas foram as etiquetas que se aplicaram a qualquer pessoa que expressasse problemas que não podiam reduzir-se aos da “luta de classes” propriamente dita.
O marxismo negou aos integrantes das classes oprimidas o atributo de sujeitos. Ao fazer isso, o marxismo, a causa do poder político e ideológico que esta “ciência revolucionária” teve imediatamente sobre o movimento operário e os outros grupos políticos, impediu a todas as categorias das pessoas oprimidas que se constituíam historicamente como sujeitos (como sujeitos de suas lutas, por exemplo). Isto significa que as “massas” não lutavam por elas mesmas, mas pelo (o) partido ou suas organizações. E quando uma transformação econômica teve lugar (finda a propriedade privada, constituição do estado socialista), nenhuma mudança revolucionária teve lugar na nova sociedade, porque as próprias pessoas não haviam mudado.
Para as mulheres, o marxismo teve duas consequências. Tornou impossível que tomassem consciência de que eram uma classe e, portanto, as impediu de constituírem-se como classe durante muito tempo, deixando a relação “mulher/homem” fora da ordem social, fazendo dela uma relação “natural” – sem dúvida, a única relação vista dessa maneira pelos marxistas, junto com a relação entre mulheres e filhos – , e ocultando, finalmente, o conflito de classe entre homens e mulheres através de uma divisão natural do trabalho (A Ideologia Alemã). Isto no que se refere ao nível teórico (ideológico). Na prática, Lenin, o partido, todos os partidos comunistas até hoje, incluindo a todos os grupos políticos mais radicais, sempre reagiram contra qualquer tentativa das mulheres de refletir e formar grupos baseados em seu próprio problema de classe, com acusações de divisionismo. Ao unirmo-nos, nós, as mulheres, dividimos a força do povo. Isto significa que, para os marxistas, as mulheres pertencem, seja a classe burguesa ou a classe operária, aos homens dessas classes. Mais ainda, a teoria marxista não permite às mulheres, como à outras classes de pessoas oprimidas, que se constituam como sujeitos históricos, porque o marxismo não leva em conta que uma classe também consiste em indivíduos, um por um. A consciência de classe não é suficiente. Temos que tentar entender filosoficamente (politicamente) estes conceitos de “sujeito” e “consciência de classe” e como funcionam em relação a nossa história. Quando descobrimos que as mulheres são objeto de opressão e apropriação, no momento exato que somos capazes de reconhecer isso, nos convertemos em sujeitos em sentido de sujeitos cognitivos, por meio de uma operação de abstração. A consciência da opressão não é somente uma reação (uma luta) contra a opressão: supõe também uma total reavaliação conceitual do mundo social, sua total reorganização com novos conceitos, desenvolvidos a partir do ponto de vista da opressão. É o que eu chamaria de ciência da opressão, criada pelos oprimidos. Esta operação de entender a realidade tem que ser empreendida por cada uma de nós: designamo-las de práticas subjetivas, cognitivas. Este movimento de ir e vir entre os dois níveis da realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão, que são, ambas, realidades sociais) se conquista através da linguagem.
            Somos nós mesmas que historicamente temos que realizar esta tarefa de definir o que é um sujeito individual em termos materialistas. Isto parece ser impossível, porque o materialismo e a subjetividade sempre foram vistos como coisas excludentes. Longe de nos desesperarmos, por não entendê-lo, temos que compreender o abandono por muitas de nós do mito da “Mulher” (que é somente uma miragem que nos distrai em nosso caminho); ele se explica pela necessidade que cada ser humano tem de existir como indivíduo, e também como membro de uma classe. Esta talvez seja a primeira condição para que se consuma a revolução que desejamos, sem a qual não há luta real ou transformação. Mas, paralelamente, sem classe nem consciência de classe não há verdadeiros sujeitos, somente indivíduos alienados. Para as mulheres, responder ao questionamento acerca do sujeito individual em termos materialistas consiste,  em primeiro lugar,  em mostrar, como o fizeram as feministas e as lésbicas, que os problemas supostamente subjetivos, “individuais” e “privados” são, de fato, problemas sociais, problemas de classe; que a sexualidade não é, para as mulheres,  uma expressão individual e subjetiva, mas uma instituição social e violenta. Porém, uma vez que tenhamos mostrado que todos os nossos problemas supostamente pessoais são, de fato, problemas de classe, ainda nos faltará responder ao problema do sujeito de cada mulher, tomada separadamente;  não o mito, mas cada uma de nós. Neste ponto, creio que somente mais além das categorias de sexo (mulher e homem) pode encontrar-se uma nova e subjetiva definição de pessoa e de sujeito para toda a humanidade, e que o surgimento de sujeitos individuais exige destruir primeiro as categorias de sexo, eliminando seu uso,  e rejeitando todas as ciências que ainda utilizam tais categorias como seu fundamento (praticamente todas as ciências humanas).
Porém, destruir “a mulher” não significa que nosso propósito seja a destruição física do lesbianismo simultaneamente com a categoria de sexo, porque o lesbianismo oferece, de momento, a única forma social na qual podemos viver livremente. Além disso, lésbica é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lésbica) não é uma mulher nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. O que constitui uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que temos chamado de servidão, uma relação que implica obrigações pessoais e físicas e também econômicas (“a determinação de uma residência fixa”[xix], trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação da qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornarem-se ou continuar sendo heterossexuais. Somos desertoras de nossa classe, como foram os escravos americanos fugitivos quando escapavam da escravidão e se tornavam livres. Para nós, esta é uma necessidade absoluta; nossa sobrevivência exige que nos dediquemos com todas  as nossas forças a destruir essa classe – as mulheres-  com a qual os homens se apropriam das mulheres.  Isto só pode ser alcançado por meio da destruição da heterossexualidade como um sistema social baseado na opressão das mulheres e dos homens, um sistema que produz o corpo de doutrinas da diferença entre os sexos para justificar esta opressão.


[i] Texto publicado pela primeira vez em Femist Issues 1, n 2 (inverno 1981). Este texto não foi traduzido diretamente do idioma no qual foi escrito. Como não dispúnhamos do texto na língua original e precisávamos difundi-lo entre as pessoas do grupo, muitas das quais não se sentem aptas a realizar uma leitura em língua espanhola, acabamos por nos valer da tradução espanhola feita por Javier Sáez e Paco Vidarte. Trata-se de uma tradução de tradução, por tanto, todo cuidado é pouco. Referência:WITTIG, M. El pensamiento heterosexual y otros ensaios. Madrid: EGALES, 2006.
[ii] DELPHY, C.: “Por um feminism materialista”, L’Arc, n 6, 1975. Artigo recolhido em L’ennemi principal, tomo 1, Paris, Syllepse, 1998.
[iii] GULLAUMIN, C.: “Raça E natureza: sistema de marcas, ideias de grupos naturais e relações sociais”, Pluriel, n 11, 1997. Artigo disponível em Sexo, raça e Prática de poder, Paris, Côte-femmes, 1992.
[iv] Utilizo o termo “sociedade”em um sentido antropológico amplo, pois falando propriamente não se trata  de “sociedades”, dado que as sociedades lésbicas não existem de forma completamente autônoma, a margem dos sistemas sociais heterossexuais.
[v] DE BEAUVOIR, S.: O Segundo sexo. México, Alianza?Siglo XXI, 1989, p.240.
[vi] Redstockings: Feminist Revolution, New York, Random House, 1978, p.18.
[vii] DWORIN, A.: “Biological Superiority, The World’s Most Dangerous and Deadly idea”, Heresies, 6: 46.
[viii] ATKINSON, T-G.:  Amazon Odyssey, New York, links Boojs, 1974, p.15.
[ix] DWORKIN, A. Ibidem.
[x] GUILLAUMIN,C.: Ibidem.
[xi] DE BEAUVOIR, S.: Ibidem.
[xii] GUILLAUMIN, C.: Ibidem.
[xiii] Lésbica hipermasculina. (N. dos T.)
[xiv] DWORKIN,A.: Ibidem.
[xv] ATKISON, T-G.:  Ibidem, p.6: “Se o feminismo quer ser lógico, deve trabalhar para obter uma sociedade sem sexo”.
[xvi] ROSENBERG, R.: “In Search of Woman’s Nature”, Feminist Studiesm otoño, 1975, p.144.
[xvii] Ibidem, p.146.
[xviii] Em um artigo publicado em L’Idiote Internationale (maio 1990), cujo o título original era “por um movimento de liberação das mulheres”.
[xix] ROCHEFORT, C.: Les stances à Sophie. Paris, Grasset, 1963.