SÁBADO, 15 DE MAIO DE 2010
Caio Fernando Abreu, entre os anos 85 e 90, se dedicou à escrita de “Onde andará Dulce Veiga/?”. Essa foi sua segunda incursão pelo gênero do romance. Diferentemente do seu primeiro romance, Limite Branco, não há em Dulce Veiga um Caio tão angustiado (chamo atenção para o "tão"). Há um Caio maduro, que procura responder questões existenciais. À diferença dos textos anteriores, nesse último, há uma resposta.
A busca por Dulce Veiga, que à primeira vista parece nos colocar diante de um romance policial, classificação sugerida pelo próprio autor em uma de suas cartas, não é uma investigação policial cujo objeto seria Dulce Veiga. O objeto dessa investigação é a própria personagem principal do livro, o narrador. O que se busca é um sentindo para existência: conseguir colocar a gota de mercúrio no centro da caixinha "tinha se tornado uma questão de vida ou morte (...). De vida ou morte era exagero, mas de sanidade ou de loucura, não" (p.202). Busca-se uma existência similar a da gota que consegue "chegar ao centro, sem partir-se em mil fragmentos pelo caminho. Completo, total. Sem deixar pedaço algum para trás” (Idem, ibidem).
Como chegar ao centro sem se partir em mil fragmentos pelo caminho? Essa parece ser uma das questões centrais postas pelo texto, cuja resposta parece ser indicada quando o narrador encontra Saul, o qual, tal como aquele que pediu um beijo a Arandi, pede um beijo ao narrador. Beijar Saul implica a aceitação daquilo que lhe causa repulsa, implica o abandono do que é imposto culturalmente. Abandonar tudo isso é necessário para chegar inteiro ao fim do caminho, "é preciso ser capaz de amar meu nojo mais profundo para que ele me mostre o caminho onde eu serei inteiramente eu" (p.212). Aceitar o nojo é se aceitar completamente: é aceitar ser aquilo que se é.
Ao aceitar o próprio nojo e ao enfrentá-lo o narrador-personagem aceita a vida com todas as suas contradições. Ele que se mostra o tempo todo cético diante dos búzios de sua vizinha e da astrologia de Patrícia, acaba por aceitar o mistério. Tal aceitação, não se dá do nada, sempre esteve presente, mas de uma maneira incompleta, numa relação de luta com um modo “racional-realista” de ver o mundo.
O encontro com Dulce é o encontro com o “real-místico”. A cantora que desistiu de tudo para buscar "outra coisa" virou cantora de churrascaria. O que poderia ser visto com tristeza, pela perda de status, não o é. Dulce é pobre, mas encontrou o algo mais que não encontraria num mundo essencialmente urbano. Ao que parece, não só não podemos encontrar o místico e com ele a felicidade no mundo urbano, como este último constitui impedimento para que se alcancem tais coisas: o algo além. Somente no mundo de Dulce Veiga é possível encontrar outra coisa, algo além, e é isso que o narrador descobre ao encontrar Dulce. O algo além é a própria vida em sua simplicidade encarada a partir de sua faceta mística e inexplicável.
No entanto, mesmo tendo encontrado Dulce Veiga a personagem central não permanece com ela, volta para sua vida urbana. Volta que não se dá sem que uma modificação tenha sido operada e sem que parte do que não pode ser encontrado no mundo urbano seja levado para este mesmo, afinal Cazuza (O gato) vai junto para São Paulo. O livro, por estes e outros motivos, busca uma espécie de equilíbrio entre o místico e o racional. É nesse equilíbrio que encontramos um sentindo a nos mostrar como podemos chegar ao fim do caminho sem nos fragmentarmos completamente. Fragmentos há, prova disso é que, afinal, Pedro nunca mais volta e a vida não é tão simples como a caixinha de mercúrio. Caio come chocolate, se suja com ele, sem nunca deixar de pensar enquanto tira a folha que é de estanho, eis à resposta.
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