Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

sábado, 29 de setembro de 2012

AS FERRAMENTAS DO SENHOR NUNCA DESARMARÃO A CASA DO SENHOR


Comentários feitos no painel sobre “O pessoal e o político”, durante a conferência sobre o segundo sexo, em outubro e 1979.
(Audre Lorde)

Consenti em tomar parte na conferência do Instituto de Humanidades  da Universidade de Nova Iorque sob a condição de que eu comentaria a respeito dos ensaios que tratam do papel da diferença na vida das mulheres americanas; a diferença de raça, a sexualidade, a classe e a idade. A ausência dessas considerações diminui qualquer discussão feminista do pessoal e do político.

Presumir que possa existir uma discussão sobre a teoria feminista, nesta data e local, sem examinar nossas várias diferenças e sem uma contribuição significativa das mulheres pobres, das mulheres negras e do terceiro mundo, e das lésbicas é uma arrogância tipicamente acadêmica. E ainda, estou aqui como lésbica feminista negra no único painel desta conferência em que está representada a contribuição das feministas negras e lésbicas. O que isso nos diz acerca da visão desta conferência é triste, num país onde  racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis. Ler este programa é assumir que as lésbicas e as mulheres negras não têm nada a dizer sobre o existencialismo, o erótico, a cultura e o silêncio da mulher, do desenvolvimento da teoria feminista, ou da heterossexualidade e o poder. E o que quer dizer, em termos pessoais e políticos, que as duas mulheres negras que fizeram apresentações aqui foram buscadas literalmente de última hora? O que quer dizer que as ferramentas do patriarcado racista sejam usadas para examinar o futuro desse mesmo patriarcado?  Quer dizer que somente os perímetros mais estreitos de uma mudança social serão possíveis e permitidos.

A ausência de qualquer consideração do conhecimento lésbico ou das mulheres terceiro-mundistas deixa um grave vazio dentro desta conferência e dentro dos ensaios aqui apresentados. Por exemplo, num ensaio sobre as relações materiais entre mulheres, estava consciente de que o modelo usado para representar o labor da cinza* ignora por completo meu conhecimento como lésbica negra. Neste ensaio não havia nenhuma análise sobre a mutualidade entre mulheres, nem dos sistemas de apoio compartilhado, nem das interdependências entre as lésbicas e as mulheres que se identificam com mulheres. Contudo, é somente dentro do modelo patriarcal da criação que as mulheres “que tentam emancipar-se talvez paguem  preço demasiado alto dado os resultados”, como esse ensaio declara.
Para as mulheres, a necessidade e o desejo de compartilhar a afetividade entre si não é patológico é um resgate, e é dentro deste conhecimento que nosso poder verdadeiro se redescobre. É essa conexão verdadeira entre mulheres que tanto teme o mundo patriarcal. Porque é somente sob uma estrutura patriarcal  que a reprodução é o único poder social disponível às mulheres.

A interdependência entre mulheres é o único caminho em direção a uma liberdade que permita ao “eu” “ser”, para criar e não para ser utilizada. Esta é a diferença entre o “ser”passivo e o “ser” ativo.
Somente defender a tolerância à diferença entre as mulheres é fazer uma reforma grosseira. É a negação completa da função criativa desempenhada pela diferença em nossas vidas. Porque a diferença não deve ser somente tolerada, ela deve ser vista como uma fonte de polaridades necessárias, na qual nossa criatividade pode brilhar como dialética. Somente assim a necessidade de interdependência deixa de ser ameaçadora. Somente dentro dessa interdependência de esforços diferentes, reconhecidos e iguais, é que se pode engendrar o poder para buscar novas maneiras de ativamente “ser”, tanto como o valor e o  fundamento para atuar onde não há promissórias.

Dentro da interdependência das diferenças mútuas não dominantes se encontra a segurança que nos permite descer ao caos do conhecimento e regressar com visões verdadeiras de nosso futuro, junto com o poder concomitante para efetuar as mudanças que podem realizar o bom futuro. A diferença é essa conexão em carne viva e poderosa da qual se forja nosso poder pessoal.

Como mulheres, nos ensinaram a ignorar nossas diferenças ou a vê-las como causas para a separação e suspeita, ao invés de apreciá-las como forças para a mudança. Sem comunidade, não há liberação. Só há o mais vulnerável e temporal armistício entre o despojo de nossas diferenças, nem o pretexto patético de que as diferenças não existem.

Essas entre nós que estão fora do círculo da definição social de mulher aceitável; essas entre nós  que foram forjadas nos crisóis (potes, vasos) da diferença, essas entre nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são maiores, sabem que o sobreviver não é uma habilidade acadêmica. Significa aprender a ficar só, a não ser popular, e, às vezes, vituperada, tanto como fazer uma causa em comum com essas que se identificam fora das estruturas, para poder definir e buscar um mundo no qual todas possamos florescer. Significa aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças. Porque as ferramentas do senhor nunca desarmarão a casa do senhor. Talvez nos permitam ganhar o jogo temporariamente, mas nunca nos deixarão efetuar uma mudança genuína. E este ato é ameaçador somente para aquelas mulheres que ainda definem a casa do Senhor como único recurso de apoio.

As mulheres pobres e terceiro-mundistas sabem que existe pouca diferença entre as manifestações cotidianas e a desumanização por meio da escravidão conjugal e da prostituição, porque são nossas filhas que fazem fila na Rua 42 [uma zona de prostituição em Nova Iorque]. A observação de palestinas negras sobre os efeitos da impotência relativa e  das diferenças entre as relações entre mulheres e homens negros e mulheres e homens brancos demonstra alguns de nossos problemas especiais como feministas negras. Se a teoria branca americana não tem que dar conta das diferenças entre nós, nem das diferenças que resultam nos aspectos de nossas opressões, então que fazem vocês com o fato de que as mulheres que limpam suas casas e cuidam de seus filhos enquanto vocês assistem a conferências sobre a teoria feminista são, em sua maioria, pobres e terceiro-mundistas? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?

Num mundo de possibilidades iguais para todas, nossa visão pessoal é a base para a ação política. O fracasso das feministas acadêmicas ao não reconhecer a diferença como uma força crucial é o fracasso de não chegar mais além da primeira lição patriarcal. Em nosso mundo, divide e conquistarás deve converter-se em define e te apoderarás.

Por que não buscaram mais mulheres negras e terceiro-mundistas para participar desta conferência? Por que consideram duas chamadas telefônicas a mim como consultas? Sou a única fonte que dispões de nomes de negras feministas? Mesmo que o ensaio sobre a palestina negra termine com uma importante e poderosa conexão de amor entre mulheres, o que há de cooperação inter-racial entre as feministas que não se amam?

Em círculos feministas acadêmicos, a resposta a estas perguntas é, freqüentemente, “Não sabemos a quem perguntar”.  Trata-se da mesma evasão de responsabilidade, a mesma desculpa que exclui a arte das mulheres negras das exposições de mulheres; a obra de mulheres negras da maioria das publicações feministas, com exceção de uma “edição especial de mulheres terceiro-mundistas”, e os textos de mulheres negras e de suas listas de leitura. Porém, como Adrienne Rich indicou recentemente numa fala, as feministas brancas se educaram enormemente nestes dez anos, por que não se educaram também sobre as mulheres negras e as diferenças entre nós –brancas e negras- quando se trata da chave de nossa sobrevivência como movimento?

Ainda se pede às mulheres de hoje que se esforcem para diminuir a ignorância masculina e educar os homens sobre a nossa existência e nossas necessidades. Esta é a  velha e primordial tarefa de todos os opressores para manter os oprimidos  ocupados com interesses do Senhor. Agora escutamos que, não obstante a tremenda resistência,  é o trabalho das mulheres negras e terceiro-mundistas educar às mulheres brancas acerca de nossa existência, nossas diferenças, nossos papéis relativos em nossa sobrevivência comum. Este é um desvio de energia e uma repetição trágica do pensamento racista patriarcal.

“Do conhecimento das condições genuínas e nossas vida devemos extrair a força para viver e a razão para atuar”.

O racismo e a homofobia são condições reais em todas nossas vidas e neste lugar e neste tempo. Peço a todas que estão aqui que busquem  neste lugar do conhecimento em si mesmas e que toquem o terror e o ódio a qualquer diferença que vive aí. Vejam que cara tem. Somente então, o pessoal tanto quanto o político poderão começar a iluminar todas as nossas opções.

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