Comentários feitos no
painel sobre “O pessoal e o político”, durante a conferência sobre o segundo
sexo, em outubro e 1979.
(Audre Lorde)
Consenti em tomar parte na
conferência do Instituto de Humanidades
da Universidade de Nova Iorque sob a condição de que eu comentaria a
respeito dos ensaios que tratam do papel da diferença na vida das mulheres
americanas; a diferença de raça, a sexualidade, a classe e a idade. A ausência
dessas considerações diminui qualquer discussão feminista do pessoal e do
político.
Presumir que possa existir uma
discussão sobre a teoria feminista, nesta data e local, sem examinar nossas
várias diferenças e sem uma contribuição significativa das mulheres pobres, das
mulheres negras e do terceiro mundo, e das lésbicas é uma arrogância
tipicamente acadêmica. E ainda, estou aqui como lésbica feminista negra no
único painel desta conferência em que está representada a contribuição das
feministas negras e lésbicas. O que isso nos diz acerca da visão desta
conferência é triste, num país onde
racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis. Ler este programa é
assumir que as lésbicas e as mulheres negras não têm nada a dizer sobre o
existencialismo, o erótico, a cultura e o silêncio da mulher, do
desenvolvimento da teoria feminista, ou da heterossexualidade e o poder. E o
que quer dizer, em termos pessoais e políticos, que as duas mulheres negras que
fizeram apresentações aqui foram buscadas literalmente de última hora? O que
quer dizer que as ferramentas do patriarcado racista sejam usadas para examinar
o futuro desse mesmo patriarcado? Quer
dizer que somente os perímetros mais estreitos de uma mudança social serão
possíveis e permitidos.
A ausência de qualquer
consideração do conhecimento lésbico ou das mulheres terceiro-mundistas deixa
um grave vazio dentro desta conferência e dentro dos ensaios aqui apresentados.
Por exemplo, num ensaio sobre as relações materiais entre mulheres, estava
consciente de que o modelo usado para representar o labor da cinza* ignora por
completo meu conhecimento como lésbica negra. Neste ensaio não havia nenhuma
análise sobre a mutualidade entre mulheres, nem dos sistemas de apoio
compartilhado, nem das interdependências entre as lésbicas e as mulheres que se
identificam com mulheres. Contudo, é somente dentro do modelo patriarcal da
criação que as mulheres “que tentam emancipar-se talvez paguem preço demasiado alto dado os resultados”, como
esse ensaio declara.
Para as mulheres, a necessidade e
o desejo de compartilhar a afetividade entre si não é patológico é um resgate,
e é dentro deste conhecimento que nosso poder verdadeiro se redescobre. É essa
conexão verdadeira entre mulheres que tanto teme o mundo patriarcal. Porque é somente sob uma estrutura
patriarcal que a reprodução é o único
poder social disponível às mulheres.
A interdependência entre mulheres
é o único caminho em direção a uma liberdade que permita ao “eu” “ser”, para
criar e não para ser utilizada. Esta é a diferença entre o “ser”passivo e o
“ser” ativo.
Somente defender a tolerância à
diferença entre as mulheres é fazer uma reforma grosseira. É a negação completa
da função criativa desempenhada pela diferença em nossas vidas. Porque a
diferença não deve ser somente tolerada, ela deve ser vista como uma fonte de
polaridades necessárias, na qual nossa criatividade pode brilhar como
dialética. Somente assim a necessidade de interdependência deixa de ser
ameaçadora. Somente dentro dessa interdependência de esforços diferentes,
reconhecidos e iguais, é que se pode engendrar o poder para buscar novas
maneiras de ativamente “ser”, tanto como o valor e o fundamento para atuar onde não há
promissórias.
Dentro da interdependência das
diferenças mútuas não dominantes se encontra a segurança que nos permite descer
ao caos do conhecimento e regressar com visões verdadeiras de nosso futuro,
junto com o poder concomitante para efetuar as mudanças que podem realizar o
bom futuro. A diferença é essa conexão em carne viva e poderosa da qual se
forja nosso poder pessoal.
Como mulheres, nos ensinaram a
ignorar nossas diferenças ou a vê-las como causas para a separação e suspeita,
ao invés de apreciá-las como forças para a mudança. Sem comunidade, não há
liberação. Só há o mais vulnerável e temporal armistício entre o despojo de
nossas diferenças, nem o pretexto patético de que as diferenças não existem.
Essas entre nós que estão fora do
círculo da definição social de mulher aceitável; essas entre nós que foram forjadas nos crisóis (potes, vasos)
da diferença, essas entre nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras,
que são maiores, sabem que o sobreviver não é uma habilidade acadêmica.
Significa aprender a ficar só, a não ser popular, e, às vezes, vituperada,
tanto como fazer uma causa em comum com essas que se identificam fora das
estruturas, para poder definir e buscar um mundo no qual todas possamos florescer.
Significa aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças. Porque as ferramentas do senhor nunca
desarmarão a casa do senhor. Talvez nos permitam ganhar o jogo
temporariamente, mas nunca nos deixarão efetuar uma mudança genuína. E este ato
é ameaçador somente para aquelas mulheres que ainda definem a casa do Senhor
como único recurso de apoio.
As mulheres pobres e
terceiro-mundistas sabem que existe pouca diferença entre as manifestações
cotidianas e a desumanização por meio da escravidão conjugal e da prostituição,
porque são nossas filhas que fazem fila na Rua 42 [uma zona de prostituição em
Nova Iorque]. A observação de palestinas negras sobre os efeitos da impotência
relativa e das diferenças entre as
relações entre mulheres e homens negros e mulheres e homens brancos demonstra
alguns de nossos problemas especiais como feministas negras. Se a teoria branca
americana não tem que dar conta das diferenças entre nós, nem das diferenças
que resultam nos aspectos de nossas opressões, então que fazem vocês com o fato
de que as mulheres que limpam suas casas e cuidam de seus filhos enquanto vocês
assistem a conferências sobre a teoria feminista são, em sua maioria, pobres e
terceiro-mundistas? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?
Num mundo de possibilidades
iguais para todas, nossa visão pessoal é a base para a ação política. O
fracasso das feministas acadêmicas ao não reconhecer a diferença como uma força
crucial é o fracasso de não chegar mais além da primeira lição patriarcal. Em
nosso mundo, divide e conquistarás deve converter-se em define e te apoderarás.
Por que não buscaram mais
mulheres negras e terceiro-mundistas para participar desta conferência? Por que
consideram duas chamadas telefônicas a mim como consultas? Sou a única fonte
que dispões de nomes de negras feministas? Mesmo que o ensaio sobre a palestina
negra termine com uma importante e poderosa conexão de amor entre mulheres, o
que há de cooperação inter-racial entre as feministas que não se amam?
Em círculos feministas
acadêmicos, a resposta a estas perguntas é, freqüentemente, “Não sabemos a quem
perguntar”. Trata-se da mesma evasão de
responsabilidade, a mesma desculpa que exclui a arte das mulheres negras das
exposições de mulheres; a obra de mulheres negras da maioria das publicações
feministas, com exceção de uma “edição especial de mulheres
terceiro-mundistas”, e os textos de mulheres negras e de suas listas de leitura.
Porém, como Adrienne Rich indicou recentemente numa fala, as feministas brancas
se educaram enormemente nestes dez anos, por que não se educaram também sobre
as mulheres negras e as diferenças entre nós –brancas e negras- quando se trata
da chave de nossa sobrevivência como movimento?
Ainda se pede às mulheres de hoje
que se esforcem para diminuir a ignorância masculina e educar os homens sobre a
nossa existência e nossas necessidades. Esta é a velha e primordial tarefa de todos os
opressores para manter os oprimidos
ocupados com interesses do Senhor. Agora escutamos que, não obstante a
tremenda resistência, é o trabalho das
mulheres negras e terceiro-mundistas educar às mulheres brancas acerca de nossa
existência, nossas diferenças, nossos papéis relativos em nossa sobrevivência
comum. Este é um desvio de energia e uma repetição trágica do pensamento
racista patriarcal.
“Do conhecimento das condições
genuínas e nossas vida devemos extrair a força para viver e a razão para
atuar”.
O racismo e a homofobia são
condições reais em todas nossas vidas e neste lugar e neste tempo. Peço a todas
que estão aqui que busquem neste lugar
do conhecimento em si mesmas e que toquem o terror e o ódio a qualquer
diferença que vive aí. Vejam que cara tem. Somente então, o pessoal tanto
quanto o político poderão começar a iluminar todas as nossas opções.
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