Corresponde ao critico cultural
Jonathan Sawday o mérito de ter mostrado que a arte participa em cada momento
das técnicas médicas de representação que dominam as disciplinas de
normalização e controle do corpo. Esta cumplicidade não tem por suporte um
objeto natural comum sobre o qual as técnicas, artísticas ou científicas, possam
aplicarem-se(volcarse) fielmente. Digamos
sem rodeio: a arte, como as disciplinas de normalização e controle, não
representa nada, ela produz o corpo que diz representar. Entretanto, nesta
empresa de invenção tecnoplástica a arte não se encontra em uma relação de
vassalagem. Não há imposição ideológica ou superestrutura científica que domine
completamente a produção artística. Nos encontramos muito mais em presença de
um tráfico de signos e materiais entre diversos sistemas culturais. Os anatomistas do Renascimento iniciam um
devenir público do interior do corpo. A partir deste momento, o desdobramento
da razão visual pornopolítica da modernidade dará como axioma a transformação
da totalidade do corpo em imagem.
O Raio X, o microscópio, a tomografia
digital ou o scanner realizaram progressivamente este processo de
exteriorização do corpo. Este panoptismo corporal alcança seu clímax no Visible
Human Project (VHP) quando o corpo do
justiçado da prisão de Waco, no Texas, Joseph Paul Jernigan, é dissecado,
convertido em informação digital e jogado na web em 1994. O cadáver de Jeringan foi congelado a menos de 85 graus C º, dividido em finíssimas lâminas, scanneado,
fotografado, filmado digitalmente e transformado em cartão (carpeta) de
informática de 15 gigabytes. O corpo se converte assim, literalmente, no
detrito (detritus) de seus próprios processos de representação: a digitalização
total faz-se acompanhar da redução da materialidade do corpo em resíduo
líquido. A imagem hiper-realista de Jeringan (disponível em: www.visiblehumanproject.com)
corresponde a uma fotografia indéxica do corpo. Se trata de uma reconstrução
computacional a partir de dados numéricos. O Corpo acaba por se tornar arquivo
digital. Um ano depois, será digitalizada e posta em circulação (línea) a
primeira Mulher Visível, que foi doada (ou quem sabe vendida) anonimamente à
ciência por seu esposo, tutor último de seu interior visível, tem sido chamada
de a dona de casa de Maryland.
Este improvável casal digital
americano se converteu assim no modelo heterossexual universal do corpo humano
visível. A representação aqui é total, não somente porque cada uma de suas
células fica exposta ao olho técnico, mas, sobretudo, pelas condições de exposição
pública global: o cibernético casal é visível e pode ser baixado em versão
CD-Rom 24 horas por dia de qualquer ponto do planeta ,transformando, assim, a
web ao mesmo tempo em teatro anatômico hiper-midiático e em reality show
postmortem. Satisfazem-se assim ao paroxismo duas das exigências da
modernidade: a redução do corpo a imagem capitalizável e a redução da
multiplicidade corporal à diferença sexual. Neste processo de publicação do
corpo, a produção da diferença sexual como fatum visível se revela como um dos
elementos cruciais de uma nova empresa ocidental que toma para si como objetivo
o controle e a maximização da espécie, aquilo que Foucault chamou de biopolítica.
Até o século XVI, nos recorda o
historiador Thomas Laqueur, o sexo feminino não existia como entidade biológica
independentemente em si mesma, mas simplesmente como uma variável débil e
interiorizada do sexo masculino. Com a aparição da anatomia e do capitalismo
industrial, emergem progressivamente as primeiras representações do clitóris, da
vagina e das trompas de Falópio e com elas um novo regime político-visual: o
humano está natural e universalmente divido em masculino e feminino, dois
sexos, opostos porém complementares, cujo destino é a procriação sexual. No
final do século XIX, esta teoria do corpo, apoiando-se na fotografia nascente
como método documental e hermenêutico, segrega novos dispositivos de controle
jurídico e médico: inventa a normalidade heterossexual, patologiza e persegue a
homossexualidade, o afeminamento dos corpos considerados masculinos e a
masculinização dos corpos considerados femininos. Estas técnicas de produção e
controle do corpo se tornaram progressivamente moleculares a partir dos anos
40, com a identificação do mapa cromossômico individual e com o isolamento e a
produção sintética dos chamados hormônios sexuais.
Esta será a era da pílula e da prótese,
da invenção da transexualidade, porém também a era da mutilação sistemática dos
bebes intersexuais em benefício da retórica visual da diferença sexual. Este
será também o momento da emergência da crítica feminista, gay e lésbica da
representação, o momento em que primeiro Claude Cahun e, em seguida, Andy
Warhol iniciaram o processo de desconstrução desta estética somatopolítica. Aqueles
que haviam sido objetos monstruosos da ciência se tornaram sujeitos da
representação apropriando-se e desviando as técnicas biopolíticas de produção
da diferença sexual, tirando vantagem de sua promíscua relação com elas.
Trata-se, então, de fazer proliferar o corpo e a sexualidade, de criar as
condições para a emergência da nova corporalidade polimorfa por meio da
modificação plástica do campo da experiência sensível.
A arte se afirma como uma
disciplina de desenho contrasexual capaz de criticar, modificar e reinventar as
condições de visibilidade do sujeito sexual contemporâneo. Uma estética que, em
última análise, teria como objeto a ambiciosa e, ao mesmo tempo, sutil tarefa
de produzir órgãos e determinar os contextos de sua utilização fora da economia
hetero/homossexual moderna. Podemos falar assim de uma prática biopoética para
qualidifcar o trabalho de muitos dos artistas e ativistas queer e transgênero
contemporâneos como Hans Scheirl, Monika Treut, Del La Grace Volcano, Dieter
Huber, Bob Flanagan, Annie Sprinkle, Jenny Saville, Cabello/Carceler, Bruce
LaBruce, Moisés Martines, Xi Maos o Ron Athey. Nestes casos, a arte torna-se
utilização insubmissa das técnicas de produção do corpo visível. Este exercício
de reapropriação afeta não somente a utilização da fotografia, do cinema e do
vídeo, mas também a ingestão de hormônios, as operações cirúrgicas e a
fabricação performativa de paixões coletivas. Esta nova arte pílula -resposta a
um corpo digital - é um dos lugares onde acontecem hoje a política e a estética
como experimentos, ou, nos termos de Sloterdijk, como práticas de intoxicação
voluntária.
Traduzido a partir de: http://salonkritik.net/04-06/archivo/2005/09/el_cuerpo_digit.php (Setembro de 2005)
Traduzido a partir de: http://salonkritik.net/04-06/archivo/2005/09/el_cuerpo_digit.php (Setembro de 2005)
Nenhum comentário:
Postar um comentário