Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

domingo, 16 de setembro de 2012

O corpo digitalizado – Beatriz Preciado



Corresponde ao critico cultural Jonathan Sawday o mérito de ter mostrado que a arte participa em cada momento das técnicas médicas de representação que dominam as disciplinas de normalização e controle do corpo. Esta cumplicidade não tem por suporte um objeto natural comum sobre  o qual  as técnicas, artísticas ou científicas, possam aplicarem-se(volcarse) fielmente. Digamos sem rodeio: a arte, como as disciplinas de normalização e controle, não representa nada, ela produz o corpo que diz representar. Entretanto, nesta empresa de invenção tecnoplástica a arte não se encontra em uma relação de vassalagem. Não há imposição ideológica ou superestrutura científica que domine completamente a produção artística. Nos encontramos muito mais em presença de um tráfico de signos e materiais entre diversos sistemas culturais.  Os anatomistas do Renascimento iniciam um devenir público do interior do corpo. A partir deste momento, o desdobramento da razão visual pornopolítica da modernidade dará como axioma a transformação da totalidade do corpo em imagem.
O Raio X, o microscópio, a tomografia digital ou o scanner realizaram progressivamente este processo de exteriorização do corpo. Este panoptismo corporal alcança seu clímax no Visible Human Project (VHP)  quando o corpo do justiçado da prisão de Waco, no Texas, Joseph Paul Jernigan, é dissecado, convertido em informação digital e jogado na web em 1994. O cadáver de Jeringan foi congelado a menos de 85 graus C º, dividido em finíssimas lâminas, scanneado, fotografado, filmado digitalmente e transformado em cartão (carpeta) de informática de 15 gigabytes. O corpo se converte assim, literalmente, no detrito (detritus) de seus próprios processos de representação: a digitalização total faz-se acompanhar da redução da materialidade do corpo em resíduo líquido. A imagem hiper-realista de Jeringan (disponível em:  www.visiblehumanproject.com) corresponde a uma fotografia indéxica do corpo. Se trata de uma reconstrução computacional a partir de dados numéricos. O Corpo acaba por se tornar arquivo digital. Um ano depois, será digitalizada e posta em circulação (línea) a primeira Mulher Visível, que foi doada (ou quem sabe vendida) anonimamente à ciência por seu esposo, tutor último de seu interior visível, tem sido chamada de a dona de casa de Maryland.
Este improvável casal digital americano se converteu assim no modelo heterossexual universal do corpo humano visível. A representação aqui é total, não somente porque cada uma de suas células fica exposta ao olho técnico, mas, sobretudo, pelas condições de exposição pública global: o cibernético casal é visível e pode ser baixado em versão CD-Rom 24 horas por dia de qualquer ponto do planeta ,transformando, assim, a web ao mesmo tempo em teatro anatômico hiper-midiático e em reality show postmortem. Satisfazem-se assim ao paroxismo duas das exigências da modernidade: a redução do corpo a imagem capitalizável e a redução da multiplicidade corporal à diferença sexual. Neste processo de publicação do corpo, a produção da diferença sexual como fatum visível se revela como um dos elementos cruciais de uma nova empresa ocidental que toma para si como objetivo o controle e a maximização da espécie, aquilo que Foucault chamou de biopolítica.
Até o século XVI, nos recorda o historiador Thomas Laqueur, o sexo feminino não existia como entidade biológica independentemente em si mesma, mas simplesmente como uma variável débil e interiorizada do sexo masculino. Com a aparição da anatomia e do capitalismo industrial, emergem progressivamente as primeiras representações do clitóris, da vagina e das trompas de Falópio e com elas um novo regime político-visual: o humano está natural e universalmente divido em masculino e feminino, dois sexos, opostos porém complementares, cujo destino é a procriação sexual. No final do século XIX, esta teoria do corpo, apoiando-se na fotografia nascente como método documental e hermenêutico, segrega novos dispositivos de controle jurídico e médico: inventa a normalidade heterossexual, patologiza e persegue a homossexualidade, o afeminamento dos corpos considerados masculinos e a masculinização dos corpos considerados femininos. Estas técnicas de produção e controle do corpo se tornaram progressivamente moleculares a partir dos anos 40, com a identificação do mapa cromossômico individual e com o isolamento e a produção sintética dos chamados hormônios sexuais.
Esta será a era da pílula e da prótese, da invenção da transexualidade, porém também a era da mutilação sistemática dos bebes intersexuais em benefício da retórica visual da diferença sexual. Este será também o momento da emergência da crítica feminista, gay e lésbica da representação, o momento em que primeiro Claude Cahun e, em seguida, Andy Warhol iniciaram o processo de desconstrução desta estética somatopolítica.   Aqueles que haviam sido objetos monstruosos da ciência se tornaram sujeitos da representação apropriando-se e desviando as técnicas biopolíticas de produção da diferença sexual, tirando vantagem de sua promíscua relação com elas. Trata-se, então, de fazer proliferar o corpo e a sexualidade, de criar as condições para a emergência da nova corporalidade polimorfa por meio da modificação plástica do campo da experiência sensível.
A arte se afirma como uma disciplina de desenho contrasexual capaz de criticar, modificar e reinventar as condições de visibilidade do sujeito sexual contemporâneo. Uma estética que, em última análise, teria como objeto a ambiciosa e, ao mesmo tempo, sutil tarefa de produzir órgãos e determinar os contextos de sua utilização fora da economia hetero/homossexual moderna. Podemos falar assim de uma prática biopoética para qualidifcar o trabalho de muitos dos artistas e ativistas queer e transgênero contemporâneos como Hans Scheirl, Monika Treut, Del La Grace Volcano, Dieter Huber, Bob Flanagan, Annie Sprinkle, Jenny Saville, Cabello/Carceler, Bruce LaBruce, Moisés Martines, Xi Maos o Ron Athey. Nestes casos, a arte torna-se utilização insubmissa das técnicas de produção do corpo visível. Este exercício de reapropriação afeta não somente a utilização da fotografia, do cinema e do vídeo, mas também a ingestão de hormônios, as operações cirúrgicas e a fabricação performativa de paixões coletivas. Esta nova arte pílula -resposta a um corpo digital - é um dos lugares onde acontecem hoje a política e a estética como experimentos, ou, nos termos de Sloterdijk, como práticas de intoxicação voluntária.

Traduzido a partir de: http://salonkritik.net/04-06/archivo/2005/09/el_cuerpo_digit.php (Setembro de 2005)

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