Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular. (Audre Lorde)

sábado, 29 de setembro de 2012

AS FERRAMENTAS DO SENHOR NUNCA DESARMARÃO A CASA DO SENHOR


Comentários feitos no painel sobre “O pessoal e o político”, durante a conferência sobre o segundo sexo, em outubro e 1979.
(Audre Lorde)

Consenti em tomar parte na conferência do Instituto de Humanidades  da Universidade de Nova Iorque sob a condição de que eu comentaria a respeito dos ensaios que tratam do papel da diferença na vida das mulheres americanas; a diferença de raça, a sexualidade, a classe e a idade. A ausência dessas considerações diminui qualquer discussão feminista do pessoal e do político.

Presumir que possa existir uma discussão sobre a teoria feminista, nesta data e local, sem examinar nossas várias diferenças e sem uma contribuição significativa das mulheres pobres, das mulheres negras e do terceiro mundo, e das lésbicas é uma arrogância tipicamente acadêmica. E ainda, estou aqui como lésbica feminista negra no único painel desta conferência em que está representada a contribuição das feministas negras e lésbicas. O que isso nos diz acerca da visão desta conferência é triste, num país onde  racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis. Ler este programa é assumir que as lésbicas e as mulheres negras não têm nada a dizer sobre o existencialismo, o erótico, a cultura e o silêncio da mulher, do desenvolvimento da teoria feminista, ou da heterossexualidade e o poder. E o que quer dizer, em termos pessoais e políticos, que as duas mulheres negras que fizeram apresentações aqui foram buscadas literalmente de última hora? O que quer dizer que as ferramentas do patriarcado racista sejam usadas para examinar o futuro desse mesmo patriarcado?  Quer dizer que somente os perímetros mais estreitos de uma mudança social serão possíveis e permitidos.

A ausência de qualquer consideração do conhecimento lésbico ou das mulheres terceiro-mundistas deixa um grave vazio dentro desta conferência e dentro dos ensaios aqui apresentados. Por exemplo, num ensaio sobre as relações materiais entre mulheres, estava consciente de que o modelo usado para representar o labor da cinza* ignora por completo meu conhecimento como lésbica negra. Neste ensaio não havia nenhuma análise sobre a mutualidade entre mulheres, nem dos sistemas de apoio compartilhado, nem das interdependências entre as lésbicas e as mulheres que se identificam com mulheres. Contudo, é somente dentro do modelo patriarcal da criação que as mulheres “que tentam emancipar-se talvez paguem  preço demasiado alto dado os resultados”, como esse ensaio declara.
Para as mulheres, a necessidade e o desejo de compartilhar a afetividade entre si não é patológico é um resgate, e é dentro deste conhecimento que nosso poder verdadeiro se redescobre. É essa conexão verdadeira entre mulheres que tanto teme o mundo patriarcal. Porque é somente sob uma estrutura patriarcal  que a reprodução é o único poder social disponível às mulheres.

A interdependência entre mulheres é o único caminho em direção a uma liberdade que permita ao “eu” “ser”, para criar e não para ser utilizada. Esta é a diferença entre o “ser”passivo e o “ser” ativo.
Somente defender a tolerância à diferença entre as mulheres é fazer uma reforma grosseira. É a negação completa da função criativa desempenhada pela diferença em nossas vidas. Porque a diferença não deve ser somente tolerada, ela deve ser vista como uma fonte de polaridades necessárias, na qual nossa criatividade pode brilhar como dialética. Somente assim a necessidade de interdependência deixa de ser ameaçadora. Somente dentro dessa interdependência de esforços diferentes, reconhecidos e iguais, é que se pode engendrar o poder para buscar novas maneiras de ativamente “ser”, tanto como o valor e o  fundamento para atuar onde não há promissórias.

Dentro da interdependência das diferenças mútuas não dominantes se encontra a segurança que nos permite descer ao caos do conhecimento e regressar com visões verdadeiras de nosso futuro, junto com o poder concomitante para efetuar as mudanças que podem realizar o bom futuro. A diferença é essa conexão em carne viva e poderosa da qual se forja nosso poder pessoal.

Como mulheres, nos ensinaram a ignorar nossas diferenças ou a vê-las como causas para a separação e suspeita, ao invés de apreciá-las como forças para a mudança. Sem comunidade, não há liberação. Só há o mais vulnerável e temporal armistício entre o despojo de nossas diferenças, nem o pretexto patético de que as diferenças não existem.

Essas entre nós que estão fora do círculo da definição social de mulher aceitável; essas entre nós  que foram forjadas nos crisóis (potes, vasos) da diferença, essas entre nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são maiores, sabem que o sobreviver não é uma habilidade acadêmica. Significa aprender a ficar só, a não ser popular, e, às vezes, vituperada, tanto como fazer uma causa em comum com essas que se identificam fora das estruturas, para poder definir e buscar um mundo no qual todas possamos florescer. Significa aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças. Porque as ferramentas do senhor nunca desarmarão a casa do senhor. Talvez nos permitam ganhar o jogo temporariamente, mas nunca nos deixarão efetuar uma mudança genuína. E este ato é ameaçador somente para aquelas mulheres que ainda definem a casa do Senhor como único recurso de apoio.

As mulheres pobres e terceiro-mundistas sabem que existe pouca diferença entre as manifestações cotidianas e a desumanização por meio da escravidão conjugal e da prostituição, porque são nossas filhas que fazem fila na Rua 42 [uma zona de prostituição em Nova Iorque]. A observação de palestinas negras sobre os efeitos da impotência relativa e  das diferenças entre as relações entre mulheres e homens negros e mulheres e homens brancos demonstra alguns de nossos problemas especiais como feministas negras. Se a teoria branca americana não tem que dar conta das diferenças entre nós, nem das diferenças que resultam nos aspectos de nossas opressões, então que fazem vocês com o fato de que as mulheres que limpam suas casas e cuidam de seus filhos enquanto vocês assistem a conferências sobre a teoria feminista são, em sua maioria, pobres e terceiro-mundistas? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?

Num mundo de possibilidades iguais para todas, nossa visão pessoal é a base para a ação política. O fracasso das feministas acadêmicas ao não reconhecer a diferença como uma força crucial é o fracasso de não chegar mais além da primeira lição patriarcal. Em nosso mundo, divide e conquistarás deve converter-se em define e te apoderarás.

Por que não buscaram mais mulheres negras e terceiro-mundistas para participar desta conferência? Por que consideram duas chamadas telefônicas a mim como consultas? Sou a única fonte que dispões de nomes de negras feministas? Mesmo que o ensaio sobre a palestina negra termine com uma importante e poderosa conexão de amor entre mulheres, o que há de cooperação inter-racial entre as feministas que não se amam?

Em círculos feministas acadêmicos, a resposta a estas perguntas é, freqüentemente, “Não sabemos a quem perguntar”.  Trata-se da mesma evasão de responsabilidade, a mesma desculpa que exclui a arte das mulheres negras das exposições de mulheres; a obra de mulheres negras da maioria das publicações feministas, com exceção de uma “edição especial de mulheres terceiro-mundistas”, e os textos de mulheres negras e de suas listas de leitura. Porém, como Adrienne Rich indicou recentemente numa fala, as feministas brancas se educaram enormemente nestes dez anos, por que não se educaram também sobre as mulheres negras e as diferenças entre nós –brancas e negras- quando se trata da chave de nossa sobrevivência como movimento?

Ainda se pede às mulheres de hoje que se esforcem para diminuir a ignorância masculina e educar os homens sobre a nossa existência e nossas necessidades. Esta é a  velha e primordial tarefa de todos os opressores para manter os oprimidos  ocupados com interesses do Senhor. Agora escutamos que, não obstante a tremenda resistência,  é o trabalho das mulheres negras e terceiro-mundistas educar às mulheres brancas acerca de nossa existência, nossas diferenças, nossos papéis relativos em nossa sobrevivência comum. Este é um desvio de energia e uma repetição trágica do pensamento racista patriarcal.

“Do conhecimento das condições genuínas e nossas vida devemos extrair a força para viver e a razão para atuar”.

O racismo e a homofobia são condições reais em todas nossas vidas e neste lugar e neste tempo. Peço a todas que estão aqui que busquem  neste lugar do conhecimento em si mesmas e que toquem o terror e o ódio a qualquer diferença que vive aí. Vejam que cara tem. Somente então, o pessoal tanto quanto o político poderão começar a iluminar todas as nossas opções.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

INSCRIÇÕES ABERTAS PARA CICLO DE ESTUDOS SOBRE SEXO E GÊNERO- IFMS/COXIM

Entre os dias 24 e 28 de setembro de 2012  a Casa da Diferença estará com inscrições abertas para as atividades de estudos que acontecerão neste semestre. Contamos com 15 vagas, que serão preenchidas por ordem de inscriçãoAs inscrições (contendo nome completo, telefone e/ou celular) devem ser feitas exclusivamente pela internet no seguinte endereço eletrônico:casa_dadiferenca@hotmail.com

Este é o terceiro módulo de estudos do grupo. No primeiro, fizemos a leitura e a discussão do artigo de Beatriz Preciado -  Multidões queer: por uma política dos anormais-, e tivemos como objetivos principais o contato com as teses da autora e a construção de uma espécie de mapa teórico que nos permitisse identificar autores e autoras importantes para compreendermos o processo de constituição do sexo dentro da atual sexopolítica contemporânea. No segundo, realizamos a leitura e a discussão do primeiro volume da História da sexualidade: a vontade de saber, escrito pelo filósofo Michel Foucault. Tentamos determinar quais eram as principais teses expressas no livro e entender a constituição do dispositivo da sexualidade.  Para o terceiro módulo escolhemos a obra Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, escrita por Thomas Laqueur. Nossa escolha não foi gratuita, a leitura de Thomas Laqueur, assim como a de Preciado e a de Foucault, nos fornece elementos, por meio de analises de materiais ligados à produção da anatomia humana, para colocar o sexo, enquanto entidade estanque e biológica, em questão.

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

01/10/2012
Filme: A pele que habito
08/10/2012
Capítulo um: Da linguagem e da carne
22/10/2012
Capítulo dois: Destino é anatomia
29/10/2012
Capítulo três: Nova Ciência, uma só carne
05/11/2012
Capítulo quatro: Representando o sexo
19/11/2012
Capítulo cinco: A descoberta dos sexos
03/12/2012
Capítulo seis: O sexo socializado
10/12/2012
Filme: Morrer como um homem


NOSSOS ENCONTROS:

ONDE? IFMS/Coxim - atualmente estamos no terceiro piso da escola Padre Nunes (marcelão), a sala ainda será definida.
QUANDO? Segundas-feiras (leia o cronograma de atividades)
HORAS? das 15h40  às 17h40.

CERTIFICADOS:
Nossas reuniões contabilizam um total de 16h, porém, para que o/as participantes dediquem um período de tempo à leitura dos textos, nosso certificado contemplará mais 4h, totalizando 20h. Para o recebimento dos certificados é preciso participar de 75% das atividades presenciais.

LEMBRETE: não há  pré-requisitos para participar das reuniões, além da vontade de pensar e da  realização da leitura prévia dos textos que serão debatidos, claro! O texto será disponibilizado na Central Cópias a partir do dia 27/09.


INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS:

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud; trad. Vera Whately. - Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.


SOBRE O LIVRO (orelha escrita por Silvia Alexim Nunes):
“A diferença de sexos é ainda hoje uma questão que instiga antropólogos, filósofos, sociólogos e psicanalistas. O assunto também tornou-se cotidiano na vida cultural em geral, matéria constante na imprensa mundial. Os estudos mais recentes sobre o tema, principalmente aqueles ligados à história das mentalidades, trazem uma novidade, que é o tema deste livro: a formulação de que as relações sociais de sexos não são a-históricas, dado este que rompe com qualquer perspectiva naturalista ou biologizante.
Nesta perspectiva, Inventando o Sexo é um marco. Não só pela pesquisa histórica rigorosa que Thomas Laqueur realiza, mas principalmente pelas consequências profundas e surpreendentes que ele tira de seu objeto de estudo. Analisando os discursos sobre o corpo, a fisiologia reprodutiva e as relações entre os sexos, Laqueur demonstra como as diferentes formas de se pensar a diferença entre os sexos, de Aristóteles à Freud, pouco tiveram a ver com os progressos da ciência. Ao contrário, propõe que a passagem de um modelo de sexo único que predominou nas sociedades ocidentais da Antiguidade até o final da Renascença e que advoga a existência de um só sexo, o masculino, do qual a mulher seria uma versão imperfeita, para o modelo de dois sexos que aparece no século XVIII e que trata homens e mulheres como radicalmente diferentes e complementares, não se deu em função de um avanço da ciência, mas sim como resposta as necessidades políticas fundamentais para a construção da sociedade liberal moderna.
Para Laqueur as diferentes formas de interpretar o corpo e as diferenças entre os sexos não resultam de um conhecimento específico, sendo, ao contrário, produções discursivas principalmente dentro de um contexto de lutas e conflitos em que estão em jogo gênero e poder. Indo mais longe ainda, sugere que as teorias sobre a diferença sexual tiveram uma influência significativa no curso do progresso científico e na interpretação de resultados experimentais específicos.
A radicalidade de suas teses torna esse livro leitura obrigatória para aqueles que pretendem se dedicar ao estudo das relações entre corpo, sexo e gênero nas sociedades contemporâneas, onde ciência e as novas tecnologias reprodutivas recolocam a necessidade de uma reflexão profunda sobre o tema”.

SOBRE O AUTOR
THOMAS LAQUEUR  é professor de história da UCLA (Universidade da Califórnia), e Berkeley, onde realiza pesquisas sobre história social e história da medicina. Em 1967, graduou-se  pelo Swarthmore College em filosofia, história e biologia e, em 1973, completou sua formação no Nuffield College e na Universidade de Princeton. Entre 1980 e 1981 estudou medicina na UCLA como preparação para a produção deste livro. É membro do Centro Nacional de Ciências Humanas, na Califórnia do Norte, e da Academia Americana de Artes e Ciências. É membro fundador do jornal Representations e escreve regularmente para o London Review of Books e para a New Republic.

Entrevista com Thomas Laqueur: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=469&secao=199


SOBRE OS FILMES:

A PELE QUE HABITO

Richard Ledgard (Antonio Bandeiras) é um cirurgião plástico que, após a morte da sua mulher num acidente de carro, se interessa pela criação de uma pele com a qual poderia tê-la salvo. Doze anos depois, ele consegue cultivar esta pele em laboratório, aproveitando os avanços da ciência e atravessando campos proibidos como os da transgênese com seres humanos. No entanto, este não será o único delito que o cirurgião irá cometer.


FICHA TÉCNICA


Diretor: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Cornet, Roberto Álamo, Blanca Suárez, Eduard Fernández, José Luis Gómez, Bárbara Lennie, Susi Sánchez
Produção: Agustín Almodóvar, Esther García
Roteiro: Pedro Almodóvar, Agustín Amodóvar
Fotografia: José Luis Alcaine
Trilha Sonora: Alberto Iglesias
Duração: 133 min.
Ano: 2011
País: Espanha
Gênero: Suspense
Cor: Colorido
Distribuidora: Paris Filmes
Estúdio: Canal+ España / El Deseo S.A. / Televisión Española (TVE) / Instituto de Crédito Oficial (ICO)
Classificação: 16 anos

(As informações sobre o filme foram retiradas de: http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/a-pele-que-habito/id/17478 )



MORRER COMO UM HOMEM

Houve uma vez uma guerra… Na escuridão da noite, o jovem soldado está ausente sem licença. Tonia, veterano transexual nos shows de drags em Lisboa, vê o mundo ao seu redor desmoronar. A concorrência com os jovens artistas ameaça seu status de estrela. Pressionada pelo jovem namorado Rosário para assumir sua identidade feminina, fazendo a operação que o transformará em mulher, Tônia luta contra suas profundas convicções religiosas. Se, por um lado, ela quer ser a mulher que Rosário deseja, por outro sabe que diante de Deus jamais será mulher. E seu filho, a quem abandonou quando era criança, agora um desertor da guerra, está à sua procura. Tônia descobre estar muito doente. Para ficar longe de todos os problemas, ela viaja para o campo com Rosário, com o pretexto de visitar o irmão. Rosário toma o caminho de sua infância, mas nunca encontrará o caminho certo. Perdidos, eles vão dar em um bosque, um mundo no qual eles se deparam com a enigmática Maria Bakker e sua amiga Paula. E esse encontro vai transformar o mundo em sua cabeça.

FICHA TÉCNICA

Diretor: João Pedro Rodrigues
Elenco: Fernando Santos, Alexander David, Gonçalo Ferreira de Almeida
Produção: Maria João Sigalho
Roteiro: João Pedro Rodrigues, Rui Catalão
Fotografia: Rui Poças
Duração: 133 min.
Ano: 2009
País: Portugal, França
Gênero: Drama
Cor: Colorido
Distribuidora: Não definida

(As informações sobre o filme foram retiradas de: http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/morrer-como-um-homem/id/16349)

Filme completo disponível emhttp://www.youtube.com/watch?v=kwuTj52iFNk

sábado, 22 de setembro de 2012

Vítimas do Machismo de Suas Mulheres e Companheiras


(Letícia Lanz, 22-09-2012). Todos os dias ao redor do mundo, um grande número de mulheres são vitimadas pela violência de maridos e companheiros machistas, continuamente alimentados por uma cultura que leva o homem a acreditar ser dono da mulher. Felizmente, graças à militância feminista de décadas, muitas dessas mulheres já conseguem expor publicamente seu drama, revelando a face monstruosa de homens que as torturam, ferem e matam, seus corpos e sobretudo suas almas.
Mas há um outro lado da violência, também machista, que nunca vem à tona. Que, quando muito, é comentada a boca pequena, onde gritos dilacerantes de angústia e dor se transformam em sussurros amedrontados, cheios de vergonha e culpa.     
Estou falando de mulheres que torturam e violentam seus maridos e companheiros transgêneros, amplificando a graus inimagináveis seus tormentos existenciais, que já são insuportavelmente grandes.
A todo momento, recebo cartas de homens em estado de grande sofrimento e aflição, que nunca “agrediram” e que, muito ao contrário, sempre “agradaram” suas mulheres e companheiras, fazendo o possível e o impossível para corresponder às expectativas que elas têm de um bom cônjuge, um bom pai, um companheiro atento, fiel , carinhoso.
Pois bem: – quero denunciar, contando apenas com a pouca voz que disponho, as agruras existenciais desses homens que, apesar de fiéis ao matrimônio e cumpridores dos seus deveres para com suas famílias e para com a comunidade, estão sendo tratados por suas esposas e companheiras como delinquentes, devassos e depravados, exclusivamente em função da sua condição transgênera.
São absolutamente desumanas as torturas e humilhações diárias a que esses homens transgêneros são submetidos por mulheres machistas, horrorizadas com a descoberta da “feminilidade” dos seus parceiros amorosos. A verdade é que o “machismo feminino” dirigido a companheiros e maridos transgêneros é tão horrenda e cruel quanto o machismo praticado pelos homens contra as mulheres.
A grande maioria das mulheres transformam-se em empedernidas torturadoras ao serem informadas, pelos seus próprios parceiros, da condição transgênera que carregam em seus corpos e almas ou, pior ainda, ao descobrirem, por obra do acaso ou má-fé de terceiros, que seus maridos têm uma vida paralela, onde estão muito longe de ser “tão homens” ou “tão machos” quanto deveriam…
O próprio processo de revelar-se à parceira pode ser considerado como uma das mais cruéis sessões de tortura pelas quais um homem transgênero pode passar. São toneladas de perguntas para as quais ninguém até hoje teve resposta, entremeadas de espasmos de cólera, choros convulsivos, imprecações, ranger de dentes e silêncios profundos.
Uma vez feita a “terrível confissão” ou  a “descoberta nefasta”, instala-se um clima de guerrilha doméstica, onde o marido ou companheiro, colocado sob permanente vigilância e suspeita, passa a ser submetido a todo tipo de crueldade mental e constrangimento físico e moral.
Essa clima doméstico perdura até a inevitável separação, quase sempre de ordem judicial, com o homem sendo dessa vez constrangido e humilhado publicamente, diante de advogados que não pouparão sua condição transgênera como motivo principal do divórcio. Muitos homens transgêneros são de tal forma vitimizados por processos judiciais de separação que perdem até mesmo o direito de conviver os filhos, em razão da sua identidade de gênero.
A miopia provocada pelo machismo faz com que as mulheres, que continuam sendo suas maiores vítimas, declarem em pesquisas a sua preferência por “homens machões” assim como a sua rejeição por homens que demonstrem qualquer traço de feminilidade. Por certo essas mulheres que rejeitam a transgeneridade dos maridos e companheiros prefeririam viver ao lado de homens que as submetessem a permanentes maus tratos, que escandalosamente as traíssem com outras (ou outros…), que não tivessem a menor atenção e carinho com os filhos.
Ao contrário das mulheres constrangidas ou violentadas por maridos machistas, que hoje dispõem de todo um aparato institucional de proteção e defesa, os homens transgêneros não dispõem de nenhuma instância a que recorrer. Além de não ser comum os homens transgêneros se agruparem em associações de ajuda e proteção mútua, não existe nenhuma lei específica para defende-los das investidas de mulheres machistas, determinadas a levar seu preconceito e intolerância às últimas consequências. Resulta que esses homens acabam muito sós e completamente desamparados em relação a quaisquer direitos que têm no terreno doméstico e familiar.
Quando muito, um ou outro, de maneira envergonhada, expõe seu drama em algum e-mail carregado de dor, como um que recebi ainda esses dias, onde o autor, em tom desesperançado, faz um depoimento pungente:
depois de vivermos todo esse tempo em clima de guerra doméstica, minha esposa disse que não aguentava a minha condição transgênera e estamos separados há quase 15 dias. Para ela, não dava mais viver comigo, pois ela não suporta a minha transgeneridade. Daí eu me sinto muito culpada de ser assim, de ter comprometido o meu casamento e ter perdido a mulher da minha vida, além de estar privado do convívio diário com minhas filhas, que ainda são muito crianças e que eu amo por demais”.
Ser transgênero é normal e é legal. É perfeitamente normal um homem vestir-se com roupas femininas e/ou realizar modificações corporais para aliviar o impulso de um desejo que dilacera seus portadores. O que não é normal é as mulheres tratarem esses homens como se fossem pessoas moralmente degradadas, impondo-lhes restrições e sofrimentos que nitidamente configuram uma forma de violência doméstica sustentada por surrados valores machistas. Ao agirem de modo preconceituoso e intolerante com seus maridos e companheiros transgêneros, essas mulheres tornam-se cúmplices de uma  ordem social que sempre negou e espoliou seus direitos mais elementares.       
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
A publicação deste texto foi gentilmente concedida por Letícia Lanz, autora deste texto que se encontra, originalmente, disponível em:  http://www.leticialanz.org/vitimas-do-machismo-de-suas-mulheres-e-companheiras/

domingo, 16 de setembro de 2012

O corpo digitalizado – Beatriz Preciado



Corresponde ao critico cultural Jonathan Sawday o mérito de ter mostrado que a arte participa em cada momento das técnicas médicas de representação que dominam as disciplinas de normalização e controle do corpo. Esta cumplicidade não tem por suporte um objeto natural comum sobre  o qual  as técnicas, artísticas ou científicas, possam aplicarem-se(volcarse) fielmente. Digamos sem rodeio: a arte, como as disciplinas de normalização e controle, não representa nada, ela produz o corpo que diz representar. Entretanto, nesta empresa de invenção tecnoplástica a arte não se encontra em uma relação de vassalagem. Não há imposição ideológica ou superestrutura científica que domine completamente a produção artística. Nos encontramos muito mais em presença de um tráfico de signos e materiais entre diversos sistemas culturais.  Os anatomistas do Renascimento iniciam um devenir público do interior do corpo. A partir deste momento, o desdobramento da razão visual pornopolítica da modernidade dará como axioma a transformação da totalidade do corpo em imagem.
O Raio X, o microscópio, a tomografia digital ou o scanner realizaram progressivamente este processo de exteriorização do corpo. Este panoptismo corporal alcança seu clímax no Visible Human Project (VHP)  quando o corpo do justiçado da prisão de Waco, no Texas, Joseph Paul Jernigan, é dissecado, convertido em informação digital e jogado na web em 1994. O cadáver de Jeringan foi congelado a menos de 85 graus C º, dividido em finíssimas lâminas, scanneado, fotografado, filmado digitalmente e transformado em cartão (carpeta) de informática de 15 gigabytes. O corpo se converte assim, literalmente, no detrito (detritus) de seus próprios processos de representação: a digitalização total faz-se acompanhar da redução da materialidade do corpo em resíduo líquido. A imagem hiper-realista de Jeringan (disponível em:  www.visiblehumanproject.com) corresponde a uma fotografia indéxica do corpo. Se trata de uma reconstrução computacional a partir de dados numéricos. O Corpo acaba por se tornar arquivo digital. Um ano depois, será digitalizada e posta em circulação (línea) a primeira Mulher Visível, que foi doada (ou quem sabe vendida) anonimamente à ciência por seu esposo, tutor último de seu interior visível, tem sido chamada de a dona de casa de Maryland.
Este improvável casal digital americano se converteu assim no modelo heterossexual universal do corpo humano visível. A representação aqui é total, não somente porque cada uma de suas células fica exposta ao olho técnico, mas, sobretudo, pelas condições de exposição pública global: o cibernético casal é visível e pode ser baixado em versão CD-Rom 24 horas por dia de qualquer ponto do planeta ,transformando, assim, a web ao mesmo tempo em teatro anatômico hiper-midiático e em reality show postmortem. Satisfazem-se assim ao paroxismo duas das exigências da modernidade: a redução do corpo a imagem capitalizável e a redução da multiplicidade corporal à diferença sexual. Neste processo de publicação do corpo, a produção da diferença sexual como fatum visível se revela como um dos elementos cruciais de uma nova empresa ocidental que toma para si como objetivo o controle e a maximização da espécie, aquilo que Foucault chamou de biopolítica.
Até o século XVI, nos recorda o historiador Thomas Laqueur, o sexo feminino não existia como entidade biológica independentemente em si mesma, mas simplesmente como uma variável débil e interiorizada do sexo masculino. Com a aparição da anatomia e do capitalismo industrial, emergem progressivamente as primeiras representações do clitóris, da vagina e das trompas de Falópio e com elas um novo regime político-visual: o humano está natural e universalmente divido em masculino e feminino, dois sexos, opostos porém complementares, cujo destino é a procriação sexual. No final do século XIX, esta teoria do corpo, apoiando-se na fotografia nascente como método documental e hermenêutico, segrega novos dispositivos de controle jurídico e médico: inventa a normalidade heterossexual, patologiza e persegue a homossexualidade, o afeminamento dos corpos considerados masculinos e a masculinização dos corpos considerados femininos. Estas técnicas de produção e controle do corpo se tornaram progressivamente moleculares a partir dos anos 40, com a identificação do mapa cromossômico individual e com o isolamento e a produção sintética dos chamados hormônios sexuais.
Esta será a era da pílula e da prótese, da invenção da transexualidade, porém também a era da mutilação sistemática dos bebes intersexuais em benefício da retórica visual da diferença sexual. Este será também o momento da emergência da crítica feminista, gay e lésbica da representação, o momento em que primeiro Claude Cahun e, em seguida, Andy Warhol iniciaram o processo de desconstrução desta estética somatopolítica.   Aqueles que haviam sido objetos monstruosos da ciência se tornaram sujeitos da representação apropriando-se e desviando as técnicas biopolíticas de produção da diferença sexual, tirando vantagem de sua promíscua relação com elas. Trata-se, então, de fazer proliferar o corpo e a sexualidade, de criar as condições para a emergência da nova corporalidade polimorfa por meio da modificação plástica do campo da experiência sensível.
A arte se afirma como uma disciplina de desenho contrasexual capaz de criticar, modificar e reinventar as condições de visibilidade do sujeito sexual contemporâneo. Uma estética que, em última análise, teria como objeto a ambiciosa e, ao mesmo tempo, sutil tarefa de produzir órgãos e determinar os contextos de sua utilização fora da economia hetero/homossexual moderna. Podemos falar assim de uma prática biopoética para qualidifcar o trabalho de muitos dos artistas e ativistas queer e transgênero contemporâneos como Hans Scheirl, Monika Treut, Del La Grace Volcano, Dieter Huber, Bob Flanagan, Annie Sprinkle, Jenny Saville, Cabello/Carceler, Bruce LaBruce, Moisés Martines, Xi Maos o Ron Athey. Nestes casos, a arte torna-se utilização insubmissa das técnicas de produção do corpo visível. Este exercício de reapropriação afeta não somente a utilização da fotografia, do cinema e do vídeo, mas também a ingestão de hormônios, as operações cirúrgicas e a fabricação performativa de paixões coletivas. Esta nova arte pílula -resposta a um corpo digital - é um dos lugares onde acontecem hoje a política e a estética como experimentos, ou, nos termos de Sloterdijk, como práticas de intoxicação voluntária.

Traduzido a partir de: http://salonkritik.net/04-06/archivo/2005/09/el_cuerpo_digit.php (Setembro de 2005)

sábado, 15 de setembro de 2012

Reunião com LGBTs e simpatizantes em Coxim


"A sexualidade é como as línguas. Todos podemos aprender várias"(Beatriz Preciado)

Amanhã, aqui na cidade de Coxim, às 15h da tarde, na SINTED (próximo a área de lazer) ocorrerá uma reunião com a população LGBT para falarmos sobre os casos de homofobia que têm acontecido aqui na cidade.

É importante lembrar que, mesmo tendo os LGBTs como público alvo, a homofobia sempre está associada ao machismo, ao sexismo, ao racismo  e ao especismo, por isso, convidamos a todos e todas (feministas, anti-racistas, defensoras dos animais, mulheres, homens, etc) para somarem suas lutas nesta data. 

Devemos somar forças para, quem sabe, conseguirmos um pouco mais de dignidade. Por fim, volto a convidar a todxs para prestigiarem com sua participação ativa neste evento que conta com a organização do evento é de Magaly Nantes, Bárbara Bismark e Leonardo Bastos.

Pauta:  Casos de homofobia em Coxim e região.
            Parada LGBT/ 2012 em Campo Grande/MS

Venha aprender novas sexualidades!

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Quando crescia (Nellie Wong)


Eu sei agora que alguma vez desejei ser branca.
Como? Perguntas tu.
Deixa-me contar-te as maneiras.

quando crescia, a gente me dizia
que era escura, e eu acreditava em minha obscuridade
no espelho, em minha alma, em minha própria visão estreita

quando crescia, minhas irmãs
de pele branca eram exaltadas
por sua beleza, e na obscuridade
eu caia mais, preocupada entre paredes altas

quando crescia, lia revistas
e via filmes, estrelas loiras do cinema, pele branca,
lábios apaixonados e para ser elevada, para ser
uma mulher, uma desejada, comecei a usar
pele branca imaginária.

quando crescia, estava orgulhosa
de meu inglês, minha gramática, meu soletrar
de pertencer, caber num grupo de meninas inteligentes
inteligentes meninas chinesas, de pertencer,
de ser parte, de estar na fila

quando crescia e fui ao secundário
descobri as garotas brancas ricas,
umas poucas garotas amarelas,

com seus vestidos de algodão importado
com seus suéteres de casimira,
com seu cabelo cacheado e pensei que eu também deveria ter
o que estas garotas afortunadas tinham

quando crescia, me esfomeava
a comida americana, estilos americanos,
senha: estilo branco e até para mim, uma menina
nascida de pais chineses, ser chinesa
era sentir-me estrangeira, era limitante,
era não- norte-americana

quando crescia, me sentia envergonhada
de certos homens amarelos, seus ossos finos,
seus corpos frágeis, seu cuspir
pela rua, sua tosse,
deitados em quartos sem sol,
injetando-se nos braços.

quando crescia, a gente perguntava
se eu era filipina, polinésia, portuguesa.
nomeavam todas as cores menos o branco, a casca
de minha alma, porém não de minha tosca pele escura

quando crescia me sentia
suja. Acreditava que deus
fez limpas as pessoas brancas
e não importava quanto eu me banhasse
não podia trocar, não podia mudar
minha pele em água cinza

quando crescia jurei
que iria  fugir para as montanhas púrpuras,
casas ao lado do mar sem nada sobre
minha cabeça, com espaço para respirar,
não congestionada pela gente amarela da área
chamada o Povochinês, numa área que depois aprendi
era um bairro pobre, um de muitos corações
da ásia-américa

Eu sei agora que alguma vez desejei ser branca.
Quantas maneiras mais? Perguntas tu.
Já não te disse o suficiente?

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A OPRESSÃO DAS MULHERES E DOS ANIMAIS


“Os animais do mundo existem para seus próprios propósitos. Não foram feitos para os seres humanos, do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens.” - Alice Walker

            Os vegetarianos, assim como as feministas, enfrentam o problema de terem seus significados entendidos dentro de uma cultura dominante que aceita a legitimidade à opressão.
            Falar sobre submissão feminina numa sociedade patriarcal é um tanto complicado. Pois, aos olhos da sociedade se é um homem quem reivindica os direitos da mulher, certamente é porque deseja ser uma. Se for uma mulher quem contesta, nem merece ser ouvida. Suas vozes são silenciadas por um sistema patriarcal onde o homem branco heterossexual é quem dita as regras. Todos aqueles que não se enquadram no padrão: negros, homossexuais, trans, mulheres; não merecem atenção.
            Os animais, assim como as mulheres estão à mercê do consumo e posse. Animais são consumidos e mulheres são estupradas. E de quem é a culpa? É da vítima. Uma sociedade machista e insensível onde mulheres são vistas como objeto sexual e animais nascem para ser consumidos – eis o motivo de tanta guerra.
            O machismo afirma que a mulher é estuprada porque usa roupas vulgares ou não se dá valor. O especismo, que nada mais é do que a discriminação baseada na diferença de espécies, afirma que somos superiores aos animais não-humanos, pelo simples fato de sermos humanos. Há o mito de que os homens necessitam de carne. Como o carnivorismo é uma prática masculina, renunciá-la é opor-se ao patriarcado. Além de – no caso dos homens − colocar sua sexualidade em dúvida, já que o ato de comer carne (ou seja, o animal morto) é uma maneira de afirmar a virilidade.
            Apesar de estarmos cansados de saber que animais sentem dor assim como nós, negamo-nos a descobrir toda a verdade à cerca da nossa comida. Afinal, para que serve uma verdade que não nos convém? Não é à toa que o matadouro se encontra tão longe dos nossos olhos.



(Texto de Regiane Arruda, estudante do primeiro ano do Curso Técnico em Informática do IFMS-Coxim)