O. expressa uma Idea viril. Viril ou ao menos
masculina. Por fim uma mulher que o admite! Que admite o quê? Algo que as
mulheres até agora sempre se negaram a admitir ( e agora mais do que nunca).
Algo que os homens de todas as épocas sempre as reprovaram: que elas sempre
obedecem a sua natureza, ao chamado de seu sangue, que tudo nela é sexo, inclusive
o espírito.
Jean Paulhan, Sobre a felicidade na escravidão.
Prólogo a História de O., de Pauline de Réage
Uma revolta singular cobriu de sangue, no ano de 1838, a pacífica ilha de Barbados. Ao redor de duzentos negros, de ambos os
sexos, recentemente liberados pelas
Ordenanças de Março, chegaram numa manhã para pedir ao seu antigo senhor um tal
GLENELG, que os tornaria escravos novamente (...) Suponho (...) que os escravos
de Glenelg estavam enamorados por seu senhor, que já não podiam mais suportar
ficar sem ele.
_ Porque deveria casar-me? Gosto da vida tal como é.
Para quê necessitaria eu de uma mulher? (...) O que há de bom em uma mulher?
_ A mulher é uma trabalhadora. É a serva do homem.
_ Mas para quê se necessita de uma trabalhadora?
_ Por exemplo, se queres que retirem as castanhas do
fogo...
_Bom, se é assim, então casa-te comigo.
Ivan
Turgueniev, Memórias de um caçador
A contínua presença dos sexos, dos escravos e dos senhores
provém da mesma crença. Como não existem escravos sem senhores, não existem
mulheres sem homens. A ideologia da diferença sexual opera na nossa cultura
como uma censura, na medida em que oculta a oposição que existe no plano social
entre os homens e as mulheres colocando a natureza como causa. Masculino/feminino,
macho/fêmea são categorias que servem para dissimular o fato de que as
diferenças sociais implicam sempre uma ordem econômica, política e ideológica.
Todo sistema de dominação cria divisões no plano material e no plano econômico.
Por outro lado, as divisões se tornam abstratas e são conceitualizadas pelos
senhores e mais tarde pelos escravos quando estes se rebelam e começam a lutar.
Os senhores explicam e justificam as divisões que criaram como resultado de diferenças naturais. Os escravos, quando se
rebelam e começam a lutar, interpretam como oposições sociais essas supostas
diferenças naturais.
Porque não há nenhum sexo. Só há um sexo que é oprimido e
outro que oprime. É a opressão que cria o sexo, não o contrário. O contrário
viria a afirmar que é o sexo que cria a opressão; ou seja, a causa (a origem)
da opressão deve ser encontrada no sexo mesmo, em uma divisão natural dos sexos
que preexistiria a (ou que existiria fora de) a sociedade.
A primazia da diferença é tão constitutiva do nosso pensamento
que o impede de realizar essa reflexão sobre si mesmo que seria necessária para
colocá-lo em questão, para captar, de maneira precisa, o fundamento
constitutivo. Captar a diferença em termos dialéticos consiste em evidenciar os
termos contraditórios que devem ser resolvidos. Compreender a realidade social
em termos dialéticos materialistas consiste em captar as oposições entre
classes termo a termo e reuni-las num vínculo (um conflito na ordem social) que
é também uma resolução (uma abolição na ordem social) das contradições
aparentes.
A luta de classes é precisamente o que permite resolver a
contradição entre classes opostas, pois ela as desmantela no momento mesmo em
que as constitui e as mostra como classes. A luta de classes entre homens e
mulheres – que deveria ser empreendida por todas as mulheres – é o que resolve
as contradições entre os sexos, os destitui quando os faz compreensíveis. É preciso destacar que as contradições
participam sempre de uma ordem material. O que me interessa assinalar aqui é
que antes do conflito (a revolta, a luta) não existem categorias de oposição,
mas somente categorias de diferença. E é somente quando a luta irrompe que se
manifesta a violenta realidade das oposições e o caráter político das
diferenças. Pois enquanto as oposições (as diferenças) continuarem aparecendo
como dados, algo que está aí, “naturais”, precedendo a qualquer pensamento –
sem conflito nem luta – não haverá dialética, nem mudança, nem movimento. O
pensamento dominante se nega a analisar-se a si mesmo para compreender aquilo
que o põe em questão.
Enquanto não existir uma luta das mulheres, não haverá
conflito entre homens e mulheres. O destino das mulheres é contribuir com três
quartos do trabalho na sociedade (tanto na esfera pública quanto na esfera
privada), trabalho ao qual é preciso acrescentar o trabalho da reprodução
segundo a taxa preestabelecida da demografia. Ser assassinada e mutilada, ser
torturada e maltratada física e mentalmente; ser violada, ser golpeada e ser
forçada a casar-se, este é o destino das mulheres. E é claro que não se pode
mudar o destino. As mulheres não sabem que estão totalmente dominadas pelos
homens, e quando conseguem admitir isso “quase não conseguem acreditar”. De modo geral, como último recurso ante a
realidade nua e crua, rejeitam “crer” que os homens as dominam conscientemente
(porque a opressão é ainda mais terrível para as oprimidas que para os
opressores). Por sua vez, os homens sabem perfeitamente que dominam as mulheres
(“Somos os senhores das mulheres”, disse André Breton)[ii]
e foram educados para dominá-las. Entretanto, os homens não necessitam dizer
isso constantemente, pois raramente se fala da dominação daquilo que já se
possui [se domina].
Qual é então esse pensamento que se nega a analisar-se a si
mesmo, que nunca coloca em questão aquilo que o constitui em primeira
instância? Este pensamento é o pensamento dominante. Este pensamento afirma que
existe um “já aí” dos sexos, algo que precede a qualquer pensamento, a qualquer
sociedade. Este pensamento é o pensamento dos que governam as mulheres.
“Os pensamentos da classe dominante são também em todas as
épocas os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que é força material dominante da sociedade é também
a força dominante intelectual. A
classe que dispõe dos meios de produção material dispõe, por sua vez, dos meios de produção intelectual e, em ambos
os casos, os pensamentos daqueles que
foram despossuídos dos meios de produção intelectual são submetidos igualmente
a uma classe dominante. Os pensamentos dominantes não são mais que a expressão
ideal das relações materiais dominantes, são estas relações materiais
dominantes capturadas sob a forma de ideias, portanto, são a expressão das
relações que fazem de uma classe a classe dominante; por outras palavras, são as ideias de sua dominação” (Karl Marx e
Fredrich Engels, A ideologia alemã).
Este pensamento que se fundamenta no predomínio da diferença
é o pensamento da dominação.
A dominação fornece às mulheres um conjunto de fatos, de
dados, de aprioris que, por mais
discutíveis que sejam, formam uma enorme construção política, uma rede obscura
que cobre tudo, nossos pensamentos,
nossos atos, nosso trabalho, nossas
sensações, nossas relações.
Em toda parte a dominação nos ensina:
·
que
antes de qualquer pensamento, de qualquer sociedade, há “sexos”(duas categorias
inatas de indivíduos) com uma diferença constitutiva, uma diferença que tem
consequências ontológicas (o enfoque metafísico);
·
que
antes de qualquer pensamento, de qualquer ordem social, há “sexos” que são
“naturalmente”, “biologicamente”, “hormonalmente” ou “geneticamente” diferentes
e que esta diferença tem conseqüências sociológicas (o enfoque científico);
·
que
antes de qualquer pensamento, de qualquer ordem social, há uma “divisão natural
do trabalho na família”, “uma divisão do trabalho [que] em sua origem não é outra coisa que a divisão do
trabalho no ato sexual” (o enfoque marxista).
Seja qual for o enfoque, permanece
sempre esta ideia fundamental. Os sexos, apesar de sua diferença “constitutiva”,
devem inevitavelmente desenvolver relações de categoria à categoria. Dado que
pertencem a uma ordem natural, estas relações não podem ser consideradas
relações sociais. Esta concepção que contamina todos os discursos, incluindo os
do sentido comum (a costela de Adão ou Adão é,
Eva é a costela de Adão), é o pensamento da dominação. O conjunto dos seus
discursos é reforçado constantemente em todos os níveis da realidade social e
oculta a realidade política da subjugação de um sexo pelo outro, o caráter
obrigatório da categoria em si (que constitui a primeira definição do ser
social por seu estado civil). Isso se coloca assim, ainda que a categoria de
sexo não tenha existência a priori, antes que exista uma sociedade. Enquanto
categoria de dominação, não pode ser o produto da dominação natural, é produto
da dominação social das mulheres exercida pelos homens, pois não existe outra
espécie de dominação além da dominação social.
A categoria de sexo é uma categoria
política que funda a sociedade enquanto heterossexual. Nesse sentido, não se
trata de uma questão de ser, mas de relações (já que as “mulheres” e os
“homens” são o resultado de relações) ainda que os aspectos sejam confundidos
sempre que são discutidos. A categoria de sexo é a categoria que estabelece
como “natural” a relação que está na base da sociedade (heterossexual), e
através dela metade da população – as mulheres – é “heterossexualizada” (a
fabricação das mulheres é similar a fabricação dos eunucos e a reprodução dos
escravos e dos animais) e submetida a uma economia heterossexual. A categoria
de sexo é o produto da sociedade heterossexual que impõe às mulheres a
obrigação absoluta de reproduzir a “espécie”, ou melhor, reproduzir a sociedade
heterossexual. A obrigação de reprodução da “espécie” que se impõe às mulheres
é o sistema de exploração sobre o qual se funda economicamente a
heterossexualidade. A reprodução consiste essencialmente neste trabalho, esta
produção realizada pelas mulheres, que permite aos homens apropriarem-se de todo
o trabalho das mulheres. É preciso incluir aqui a apropriação do trabalho que
está associada “por natureza” a reprodução: criar os filhos, as tarefas
domésticas. Esta apropriação do trabalho das mulheres se efetua exatamente da
mesma maneira que a apropriação do trabalho da classe trabalhadora pela classe
dominante. Não se pode dizer que uma destas duas produções (a reprodução) é
“natural” e que a outra é social. Este argumento não é mais do que a
justificativa teórica e ideológica da opressão, um argumento para fazer com que
as mulheres acreditem que antes que houvesse sociedade e em todas as sociedades
estão submetidas a esta obrigação da reprodução. Contudo, do mesmo modo como
não sabemos nada do trabalho e da produção social se nos situamos fora de um
contexto de exploração, não saberemos nada da reprodução da sociedade se não
considerarmos seu contexto de exploração.
A categoria de sexo é o produto da
sociedade heterossexual, na qual os homens se apropriam da reprodução e da
produção das mulheres, assim como de suas pessoas físicas por meio de um
contrato que se chama contrato de matrimônio. Comparemos esse contrato com o
tipo de contrato que vincula um trabalhador ao seu empresário. O contrato que
une uma mulher a um homem é, em princípio, um contrato de vida, que só a lei
pode romper (o divórcio). Atribui à mulher certas obrigações, incluindo um
trabalho não remunerado. Seu trabalho (a casa, criar as crianças), assim como
suas obrigações (atribuição de sua reprodução realizada em nome do marido,
coito forçado, coabitação dia e noite, fixação de uma residência, como está
subentendido na noção jurídica de “abandono do domicilio conjugal”) significa
que a mulher, enquanto pessoa física, pertence ao seu marido. O fato de que uma
mulher depende diretamente de seu marido está implícito na regra – geralmente
respeitada pela polícia – de não intervir quando um marido bate em sua mulher.
A polícia intervém diante de uma denuncia de agressão quando um cidadão bate em
outro cidadão. Mas uma mulher que tenha firmado contrato de matrimônio deixa,
neste momento mesmo, de ser um cidadão ordinário (protegido pela lei). A
polícia expressa abertamente sua negativa em intervir nos assuntos domésticos
(em oposição aos assuntos civis), aqui a autoridade do Estado não tem porque
intervir diretamente, já que esta autoridade foi substituída pelo marido. Basta
irmos a um lar de mulheres maltratadas para ver até que ponto esta autoridade
pode ser exercida.
A categoria de sexo é um produto da
sociedade heterossexual que faz da metade da população seres sexuais, disso
resulta o sexo ser uma categoria da qual as mulheres não podem sair. Estejam
onde estiverem, façam o que fizerem (mesmo quando trabalham num setor público)
elas são vistas como (e convertidas em) sexualmente disponíveis para os homens
e, seus seios, suas nádegas e seus vestidos, devem ser visíveis. Elas devem
ostentar sua estrela amarela, seu eterno sorriso dia e noite. Pode-se dizer que
todas as mulheres, casadas ou não, devem efetuar um serviço sexual forçado, um
serviço sexual que pode ser comparado ao serviço militar e que pode durar,
segundo as circunstâncias, um dia, um ano, vinte e cinco anos ou mais. Algumas
lésbicas e algumas religiosas escapam dele, mas são poucas, ainda que seja um
número crescente. As mulheres são muito visíveis como seres sexuais, mas como
seres sociais são totalmente invisíveis, e, ainda assim, devem se apequenar o
máximo possível e sempre devem desculpar-se. Basta fazer a leitura de
entrevistas de mulheres excepcionais nas revistas para ver que sempre se
desculpam. E, inclusive, na atualidade os jornais informam que “dois estudantes
e uma mulher”, “dois advogados e uma mulher”, “três viajantes e uma mulher”
fizeram isto e aquilo. A categoria de sexo é a categoria que une as mulheres porque
elas não podem ser concebidas fora dessa categoria. Somente elas são sexo, o sexo, e se converteu em sexo em seu espírito, em seu corpo, em
seus atos e em seus gestos; inclusive os assassinatos de que são objeto e os
golpes que recebem são sexuais. Sem
dúvida, a categoria de sexo aprisiona firmemente as mulheres.
A categoria de sexo é uma categoria
totalitária que, para provar sua existência, tem seus inquisidores, sua
justiça, seus tribunais, seu conjunto de leis, seus terrores, suas torturas,
suas mutilações, suas execuções, sua polícia.
Forma o espírito e o corpo, porque controla toda a produção mental.
Possui nossos espíritos de tal maneira que não podemos pensar fora dela. Por
esta razão devemos destruí-la e começar
a pensar para além dela se quisermos começar a pensar realmente, do mesmo modo
que devemos destruir os sexos como realidades sociológicas se quisermos começar
a existir. A categoria de sexo é uma categoria que determina a escravidão das
mulheres, e atua como forma muito precisa por meio de uma operação de redução,
como no caso dos escravos negros, tomando uma parte pelo todo, uma parte (a
cor, o sexo) pela qual tem que passar todo um grupo humano como se tivessem que
passar através de um filtro. É preciso assinalar que, no que se refere ao
estado civil, tanto a cor como o sexo devem ser “declarados”. Contudo, graças à
abolição da escravidão, a “declaração” da “cor” passou a ser considerada uma
discriminação. O mesmo não ocorre no caso da “declaração” do “sexo”, algo que
nem mesmo as mulheres pensaram em abolir. Eu me pergunto: o que estamos
esperando?[iii]
[i] Este texto foi escrito por Monique Wittig e publicado pela primeira vez em Feminist
Issues 2, n 2 (verão de 1982). Este texto não foi traduzido diretamente do
idioma no qual foi escrito. Como não dispúnhamos do texto na língua original e
precisávamos difundi-lo entre as pessoas do grupo, muitas das quais não se
sentem aptas a realizar uma leitura em língua espanhola, acabamos por nos valer
da tradução espanhola feita por Javier Sáez e Paco Vidarte. Trata-se de uma
tradução de tradução, por tanto, todo cuidado é pouco. Referência:WITTIG, M. El pensamiento heterosexual y otros ensaios. Madrid: EGALES, 2006.
[ii] BRÉTON,
A. Primeiro manifesto do surrealismo, 1927.
[iii] O
prazer no sexo não é o tema deste artigo, muito menos a felicidade na escravidão.
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