Quando se analisa a opressão das
mulheres com um enfoque materialista e feminista[ii],
se destrói a ideia de que as mulheres são um grupo natural, ou seja, “um grupo
racial de um tipo especial: um grupo natural,
um grupo de homens considerado como materialmente específico em seus corpos”[iii]. O que a análise consegue ao nível das ideias,
a prática torna efetiva ao nível dos fatos: somente por sua simples existência
uma sociedade lésbica destrói o fato artificial (social) que constitui as
mulheres como “grupo natural”. Uma sociedade lésbica[iv]
revela, pragmaticamente, que essa separação dos homens da qual as mulheres têm
sido objeto é política, e mostra que temos sido reconstruídas como um “grupo
natural”. No caso das mulheres, a ideologia vai longe, já que nossos corpos,
assim como nossas mentes, são os produtos dessa manipulação. Em nossas mentes e
em nossos corpos nos fazem corresponder, traço a traço, com a ideia de natureza que tem sido
estabelecida para nós. Somos manipuladas até o ponto em que nosso corpo
deformado é o que chamam “natural”, o que supostamente existia antes da
opressão; tão manipuladas que finalmente a opressão parece ser uma conseqüência
desta “natureza” que está dentro de nós mesmas (uma natureza que é somente uma ideia). O que uma análise
materialista faz por meio do raciocínio, uma sociedade lésbica o realiza de
fato: não só não existe o grupo natural “mulheres” (nós, as lésbicas, somos a
prova disso), mas, como indivíduos, também questionamos “a mulher”, algo que,
para nós – como para Simone de Beauvoir - é somente um mito. Ela afirmou: “não
se nasce mulher, torna-se. Não há nenhum destino biológico, psicológico ou
econômico que determine o papel que as mulheres representam na sociedade: é a
civilização como um todo que produz essa criatura intermediária entre o macho e
o eunuco, que é qualificada como feminina”[v].
Contudo, a maioria das feministas e
das lésbicas/feministas na América do Norte e em outros lugares ainda
consideram que a base da opressão das mulheres é biológica e histórica.
Algumas delas pretendem encontrar suas raízes em Simone de Beauvoir[vi].
A crença em um direito materno e em uma “pré-história” na qual as mulheres
haveriam criado a civilização (devido a uma predisposição biológica) é
simétrica à interpretação biologizante da história que tem sido feita, até
hoje, pela classe dos homens. É o mesmo método que consiste em buscar nos
homens e nas mulheres uma razão biológica para explicar sua divisão, excluindo
os fatos sociais. Para mim, isto nunca poderá
constituir um ponto de partida para uma análise lésbica da opressão das
mulheres, porque se pressupõe que a base ou a origem da sociedade humana está
fundamentada necessariamente na heterossexualidade. O matriarcado não é menos
heterossexual que o patriarcado: somente se muda o sexo do opressor. Ademais,
esta concepção não somente segue assumindo as categorias de sexo (mulher e
homem), como acaba mantendo a ideia de que a capacidade de dar a luz (ou seja,
a biologia) é o que define a mulher. E,
ainda que numa sociedade lésbica os fatos e as formas de vida contradigam esta
teoria, há lésbicas que afirmam que “as
mulheres e os homens pertencem a raças ou espécies (as duas palavras são
utilizadas de forma intercambiável) distintas: os homens são biologicamente
inferiores às mulheres; a violência dos
homens é um fenômeno biológico inevitável”[vii].
Ao fazer isto, ao admitir que há uma
divisão “natural” entre mulheres e homens, naturalizamos a história, assumimos
que “homens” e “mulheres” sempre existiram e sempre existirão. Não somente
naturalizamos a história como também, por conseqüência, naturalizamos os fenômenos sociais que
manifestam nossa opressão, tornando impossível qualquer mudança. Por exemplo, não se considera a gravidez como uma produção
forçada, mas como um processo “natural”, “biológico”, esquecendo que em nossas
sociedades a natalidade é planificada (demografia), esquecendo que nós mesmas
somos programadas para produzir crianças, mesmo que esta seja a única atividade
social, “a exceção da guerra”, que
implica tanto perigo de morte[viii].
Enquanto formos “incapazes de abandonar, por vontade ou espontaneamente, a
obrigação secular de procriar que as mulheres assumem como o ato criador
feminino”[ix],
o controle sobre essa produção de crianças significará muito mais que o simples
controle dos meios materiais da referida produção. Para ganhar este controle as
mulheres teriam que abstraírem-se da definição “a mulher”que lhes é imposta.
Uma análise feminista materialista
mostra que aquilo que nós consideramos causa e origem da opressão é somente a
“marca”[x]
que o opressor impõe sobre os oprimidos: o “mito da mulher”[xi]
com suas manifestações e efeitos materiais nas consciências e nos corpos
apropriados das mulheres. A marca não pré-existe a opressão: Colette Guillaumin
demonstrou que, antes da realidade socioeconômica da escravidão negra, o
conceito de raça não existia, ou, pelo menos, não tinha seu significado
moderno, pois designava a linhagem das famílias. Contudo, hoje, noções como
raça e sexo são entendidas como um “dado
imediato”, “sensível”, um conjunto de “características físicas”, que pertencem
a uma ordem natural. Mas, o que cremos ser uma percepção direta e física, não
passa de uma construção sofisticada e mística, uma “formação imaginária”[xii]
que reinterpreta traços físicos (em si mesmos tão neutros como qualquer outros,
mas marcados pelo sistema social) por meio da rede de relações com as quais
eles mesmos são percebidos. (Elas são vistas como negras, por isso são
negras, elas são vistas como mulheres, por isso são
mulheres. Não obstante, antes que sejam vistas desta maneira, elas tiveram
que ser feitas desta maneira.). Ter uma consciência lésbica supõe nunca
esquecer até que ponto ser “a-mulher” era para nós algo “contra natura”, algo
limitador, totalmente opressivo e destrutivo
nos velhos tempos anteriores ao movimento de liberação das mulheres. Era
uma constrição política e aquelas que resistiam eram acusadas de não ser
“verdadeiras”mulheres. Porém estávamos orgulhosas disso, porque na acusação
havia já como uma sombra de triunfo: o
reconhecimento, pelo opressor, de que “mulher”não é um conceito tão simples,
porque para ser uma, era necessário ser uma “verdadeira”. Ao mesmo tempo, éramos acusadas de querer ser
homens. Hoje, esta dupla acusação tem sido retomada com entusiasmos no contexto
do movimento de liberação das mulheres, por algumas feministas e também, por
desgraça, por algumas lésbicas cujo objetivo político parece ser tornarem-se
cada vez mais “femininas”. Porém, negar-se a ser uma mulher, contudo, não
significa ter que ser um homem. Ademais,
se tomarmos como exemplo a perfeita “butch”[xiii]
– o exemplo clássico que provoca mais horror, ao qual Proust chamou de
mulher/homem – em que difere a sua alienação daquela de alguém que quer se
tornar mulher? Tal qual. Ao menos, para uma mulher, querer ser um homem
significa que se escapou de sua programação inicial. Entretanto, ainda que
desejasse com todas as suas forças, não poderia chegar a ser um homem, porque
isso lhe exigiria não somente ter uma aparência externa de homem, mas também
ter uma consciência de homem, ou seja, a
consciência de alguém que dispõe, por direito, de dois - senão mais – escravos
“naturais”durante a vida. Isto é impossível, uma das características da
opressão das lésbicas consiste, precisamente em que colocamos as mulheres fora
de nosso alcance, já que as mulheres pertencem aos homens. Assim, uma lésbica deve
ser qualquer outra coisa, uma não-mulher, um não-homem, um produto da sociedade
e não da “natureza”, porque não há “natureza”na sociedade.
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Rejeitar
converter-se em heterossexual (ou manter-se como tal) sempre significou,
conscientemente ou não, negar-se a converter-se numa mulher, ou num homem. Para
uma lésbica isso vai mais longe do que a mera rejeição do papel de “mulher”. É a rejeição do poder econômico, ideológico e
político de um homem. Isto, nós
lésbicas, e também muitas que não o eram, já o sabiamos antes do movimento feminista
e lésbico. Contudo, como assinala Andrea Dworkin, muitas lésbicas recentemente
“tentaram transformar cada vez mais a própria ideologia que nos escravizou em
uma celebração dinâmica, religiosa, psicologicamente coercitiva do potencial
biológico feminino”[xiv].
Deste modo, algumas tendências do movimento feminista e lésbico conduzem
novamente ao mito da mulher que havia sido criado especialmente para nós pelos
homens, e com ele voltamos a cair em um grupo natural. Nos levantamos para
lutar por uma sociedade sem sexos[xv];
agora nos encontramos presas na armadilha familiar de que “ser mulher é
maravilhoso”. Simone de Beauvoir apontou precisamente a falsa consciência que
consiste em selecionar dentre as características do mito (que as mulheres são
diferentes dos homens) aquelas que parecem agradáveis, e utilizá-las para
definir as mulheres. Utilizar isso de que “é maravilhoso ser mulher”, supõe
assumir, para definir as mulheres, os melhores traços (melhores em relação a
quem?) que a opressão nos tem assinalado, e que supõe não questionar
radicalmente as categorias “homem” e “mulher”, que são categorias políticas (e
não dados naturais). Isto nos leva a lutar dentro da classe “mulheres”, não
como fazem as outras classes, pela desaparição de nossa classe, mas pela defesa
da “mulher”e seu fortalecimento. Isso não nos conduz a desenvolver com
complacência “novas” teorias sobre nossa especificidade: assim, chamamos a
nossa passividade de “não-violência”, quando nossa luta mais importante e
emergente é combater a nossa passividade (nosso medo, que está justificado). A
ambiguidade da palavra “feminista” resume toda a situação. O que significa
“feminista”? Feminismo contém a palavra “femina” (“mulher”), e significa:
alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nós, significa alguém que luta
pelas mulheres como classe e pela desaparecimento dessa classe. Para muitas
outras, isto quer dizer alguém que luta pela mulher e pela sua defesa – pelo
mito, portanto, e seu fortalecimento.
Mas, por que foi escolhida a palavra “feminista” se é tão
ambígua? Escolhemos chamarmo-nos “feminista” faz dez anos, não para apoiar ou
fortalecer o mito da mulher, nem para identificarmo-nos com a definição que o
opressor faz de nós, mas para afirmar que nosso movimento tem uma história e
para sublinhar o laço político com o primeiro movimento feminista.
É este o movimento que é preciso colocar em questão, pelo
significado que é dado à palavra feminismo. O feminismo do século passado nunca
foi capaz de solucionar suas contradições em assuntos como natureza/cultura,
mulher/sociedade. As mulheres começaram a lutar por si mesmas como um grupo e
consideraram acertadamente que compartilhavam aspectos de opressões comuns.
Mas, para elas, estes aspectos eram naturais e biológicos, e não traços
sociais. Chegaram ao ponto de adotar a teoria darwinista da evolução. Não
acreditavam, como Darwin, “que as mulheres estavam menos evoluídas que os
homens, mas acreditavam que a natureza tanto dos homens quanto das mulheres
havia divergido no curso do processo evolutivo e que a sociedade em geral
refletia a essa polarização”[xvi].
“O fracasso do primeiro feminismo provem do fato de que só atacaram a ideia
darwinista da inferioridade da mulher, mas aceitaram os fundamentos dessa
ideia, ou seja, a visão da mulher como “única””[xvii].
E, finalmente, foram as mulheres universitárias – e não as feministas – que
acabaram cientificamente com essa teoria. As primeiras feministas não lograram
olhar para a história como um processo dinâmico que se desenvolve pelos
conflitos de interesse. Elas ainda acreditavam, como os homens, que a causa
(origem) de sua opressão se encontrava nelas. E, depois de alguns triunfos, as
feministas dessa primeira onda se encontraram em frente a um beco sem saída,
sem razões para continuar lutando. Elas sustentavam o princípio ilógico da
igualdade na diferença, uma ideia que hoje está renascendo. Caíram na armadilha
que hoje nos ameaça outra vez: o mito da “mulher”.
É nossa tarefa histórica, somente nossa, definir em termos
materialistas o que chamamos opressão, analisar as mulheres como classe, o que
equivale a categoria “mulher” e a categoria “homem”, são categorias políticas e
econômicas, portanto, não são eternas. Nossa luta intenciona fazer desaparecer
os homens enquanto classe, não como um genocídio, mas como uma luta política.
Quando a classe dos “homens” tiver desaparecido, as mulheres como classe
desaparecerão também, porque não haverá escravos sem senhores. Nossa primeira
tarefa, me parece, é sempre tratar de distinguir cuidadosamente entre as
“mulheres” (a classe da qual lutamos) e “a-mulher”, o mito. Porque a “mulher”
não existe para nós: é somente uma formação imaginária, enquanto que as
“mulheres” são o produto de uma relação social. Sentimos isto claramente quando
não aceitamos que nos chamassem “movimento de liberação da mulher”[xviii].
Mais ainda, temos que destruir o mito dentro e fora de nós mesmas. A “mulher” não
é cada uma de nós, mas uma construção política e ideológica que nega a “as
mulheres” (o produto de uma relação de exploração). “A mulher” existe para nos
confundir, para ocultar a realidade “das mulheres”. Para chegar a ser uma
classe, para ter uma consciência de classe, temos primeiro que matar o mito “da
mulher”, incluindo os seus traços mais sedutores (penso em Virgínia Wolf quando
dizia que a primeira tarefa de uma mulher escritora é “matar o anjo do lar”).
Mas constituir-se como classe não significa que devamos nos suprimir como
individuo. Já que nenhum indivíduo pode ser reduzido a sua opressão, nos vemos
também confrontadas com a necessidade histórica de nos construir como sujeitos individuais em
nossa história. Creio que esta é a razão pela qual estão proliferando agora
todas estas tentativas de dar “novas” definições à mulher. O que está em jogo
(não somente para as mulheres) é uma definição de individuo, assim como uma
definição de classe. Porque, quando se admite a opressão, se faz necessário
saber e experimentar o fato de que alguma pode constituir-se em sujeito (como o
contrário, em objeto de opressão), que alguma pode converter-se em alguém apesar da opressão, que alguma
tem sua própria identidade. Não há luta possível para alguém privado de uma
identidade; carece de uma motivação interna para lutar, porque, ainda que eu só
possa lutar com os outros, primeiro luto por mim mesma.
A questão do sujeito individual tem sido historicamente uma
questão difícil. O marxismo, último avatar do materialismo, a ciência que nos
formou politicamente, nada quer saber sobre o “sujeito”. O marxismo rejeitou o
sujeito transcendental, a “pura” consciência, o sujeito “em si” como
constitutivo do conhecimento. Tudo o que pensa “em si”, previamente a qualquer
experiência, acabou na lixeira da história; tudo o que pretendia existir por
cima da matéria, antes da matéria, necessitava um deus, um espírito, ou uma
alma para existir. Isto se chama idealismo. Quanto aos indivíduos, eles são
somente o produto de relações sociais e, por isso, sua consciência só pode
estar “alienada”. (Marx, em A Ideologia
Alemã, disse, precisamente, que os indivíduos da classe dominante também
estão alienados, mesmo que sejam eles os produtores diretos das ideias que
alienam as classes por eles oprimidas. Porém, como retiram óbvias vantagens de
sua própria alienação, podem suportá-la sem muito sofrimento). A consciência de
classe existe, mas é uma consciência que não se refere a um sujeito em
particular, salvo quando participa das condições gerais de exploração ao mesmo
tempo que os outros sujeitos de sua classe, que compartilham todos a mesma
consciência. Quanto aos problemas práticos de classe – fora os problemas
definidos tradicionalmente como de classe – que podemos encontrar (por exemplo,
os problemas chamados sexuais), foram considerados problemas “burgueses” que
desapareceriam com o triunfo final da luta de classes. “Individualista”,
“subjetivista”, “pequeno-burguês”, estas foram as etiquetas que se aplicaram a
qualquer pessoa que expressasse problemas que não podiam reduzir-se aos da
“luta de classes” propriamente dita.
O marxismo negou aos integrantes das classes oprimidas o
atributo de sujeitos. Ao fazer isso, o marxismo, a causa do poder político e
ideológico que esta “ciência revolucionária” teve imediatamente sobre o
movimento operário e os outros grupos políticos, impediu a todas as categorias
das pessoas oprimidas que se constituíam historicamente como sujeitos (como
sujeitos de suas lutas, por exemplo). Isto significa que as “massas” não
lutavam por elas mesmas, mas pelo (o)
partido ou suas organizações. E quando uma transformação econômica teve lugar
(finda a propriedade privada, constituição do estado socialista), nenhuma
mudança revolucionária teve lugar na nova sociedade, porque as próprias pessoas
não haviam mudado.
Para as mulheres, o marxismo teve duas consequências. Tornou
impossível que tomassem consciência de que eram uma classe e, portanto, as
impediu de constituírem-se como classe durante muito tempo, deixando a relação
“mulher/homem” fora da ordem social, fazendo dela uma relação “natural” – sem
dúvida, a única relação vista dessa maneira pelos marxistas, junto com a
relação entre mulheres e filhos – , e ocultando, finalmente, o conflito de
classe entre homens e mulheres através de uma divisão natural do trabalho (A Ideologia Alemã). Isto no que se
refere ao nível teórico (ideológico). Na prática, Lenin, o partido, todos os partidos comunistas até hoje, incluindo a todos
os grupos políticos mais radicais, sempre reagiram contra qualquer tentativa
das mulheres de refletir e formar grupos baseados em seu próprio problema de
classe, com acusações de divisionismo. Ao unirmo-nos, nós, as mulheres,
dividimos a força do povo. Isto significa que, para os marxistas, as mulheres pertencem, seja a classe burguesa ou a
classe operária, aos homens dessas classes. Mais ainda, a teoria marxista não
permite às mulheres, como à outras classes de pessoas oprimidas, que se
constituam como sujeitos históricos, porque o marxismo não leva em conta que
uma classe também consiste em indivíduos, um por um. A consciência de classe
não é suficiente. Temos que tentar entender filosoficamente (politicamente)
estes conceitos de “sujeito” e “consciência de classe” e como funcionam em
relação a nossa história. Quando descobrimos que as mulheres são objeto de
opressão e apropriação, no momento exato que somos capazes de reconhecer isso,
nos convertemos em sujeitos em sentido de sujeitos cognitivos, por meio de uma
operação de abstração. A consciência da opressão não é somente uma reação (uma
luta) contra a opressão: supõe também uma total reavaliação conceitual do mundo
social, sua total reorganização com novos conceitos, desenvolvidos a partir do
ponto de vista da opressão. É o que eu chamaria de ciência da opressão, criada
pelos oprimidos. Esta operação de entender a realidade tem que ser empreendida
por cada uma de nós: designamo-las de práticas subjetivas, cognitivas. Este
movimento de ir e vir entre os dois níveis da realidade (a realidade conceitual
e a realidade material da opressão, que são, ambas, realidades sociais) se
conquista através da linguagem.
Somos nós
mesmas que historicamente temos que realizar esta tarefa de definir o que é um
sujeito individual em termos materialistas. Isto parece ser impossível, porque
o materialismo e a subjetividade sempre foram vistos como coisas excludentes.
Longe de nos desesperarmos, por não entendê-lo, temos que compreender o
abandono por muitas de nós do mito da “Mulher” (que é somente uma miragem que
nos distrai em nosso caminho); ele se explica pela necessidade que cada ser
humano tem de existir como indivíduo, e também como membro de uma classe. Esta
talvez seja a primeira condição para que se consuma a revolução que desejamos,
sem a qual não há luta real ou transformação. Mas, paralelamente, sem classe
nem consciência de classe não há verdadeiros sujeitos, somente indivíduos
alienados. Para as mulheres, responder ao questionamento acerca do sujeito individual em
termos materialistas consiste, em
primeiro lugar, em mostrar, como o fizeram
as feministas e as lésbicas, que os problemas supostamente subjetivos, “individuais”
e “privados” são, de fato, problemas sociais, problemas de classe; que a
sexualidade não é, para as mulheres, uma
expressão individual e subjetiva, mas uma instituição social e violenta. Porém,
uma vez que tenhamos mostrado que todos os nossos problemas supostamente
pessoais são, de fato, problemas de classe, ainda nos faltará responder ao
problema do sujeito de cada mulher, tomada separadamente; não o mito, mas cada uma de nós. Neste ponto,
creio que somente mais além das categorias de sexo (mulher e homem) pode
encontrar-se uma nova e subjetiva definição de pessoa e de sujeito para toda a
humanidade, e que o surgimento de sujeitos individuais exige destruir primeiro
as categorias de sexo, eliminando seu uso,
e rejeitando todas as ciências que ainda utilizam tais categorias como
seu fundamento (praticamente todas as ciências humanas).
Porém, destruir “a mulher” não significa que nosso propósito
seja a destruição física do lesbianismo simultaneamente com a categoria de
sexo, porque o lesbianismo oferece, de momento, a única forma social na qual
podemos viver livremente. Além disso, lésbica é o único conceito que conheço
que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito
designado (lésbica) não é uma mulher
nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. O que constitui uma
mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que temos
chamado de servidão, uma relação que implica obrigações pessoais e físicas e
também econômicas (“a determinação de uma residência fixa”[xix],
trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.),
uma relação da qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornarem-se ou
continuar sendo heterossexuais. Somos desertoras de nossa classe, como foram os
escravos americanos fugitivos quando escapavam da escravidão e se tornavam
livres. Para nós, esta é uma necessidade absoluta; nossa sobrevivência exige
que nos dediquemos com todas as nossas
forças a destruir essa classe – as mulheres-
com a qual os homens se apropriam das mulheres. Isto só pode ser alcançado por meio da
destruição da heterossexualidade como um sistema social baseado na opressão das
mulheres e dos homens, um sistema que produz o corpo de doutrinas da diferença
entre os sexos para justificar esta opressão.
[i]
Texto publicado pela primeira vez em
Femist Issues 1, n 2 (inverno 1981). Este
texto não foi traduzido diretamente do idioma no qual foi escrito. Como não
dispúnhamos do texto na língua original e precisávamos difundi-lo entre as
pessoas do grupo, muitas das quais não se sentem aptas a realizar uma leitura
em língua espanhola, acabamos por nos valer da tradução espanhola feita por
Javier Sáez e Paco Vidarte. Trata-se de uma tradução de tradução, por tanto,
todo cuidado é pouco. Referência:WITTIG, M. El pensamiento heterosexual y otros
ensaios. Madrid: EGALES, 2006.
[ii]
DELPHY, C.: “Por um feminism materialista”, L’Arc,
n 6, 1975. Artigo recolhido em L’ennemi
principal, tomo 1, Paris, Syllepse, 1998.
[iii]
GULLAUMIN, C.: “Raça E natureza: sistema de marcas, ideias de grupos naturais e
relações sociais”, Pluriel, n 11,
1997. Artigo disponível em Sexo, raça e
Prática de poder, Paris, Côte-femmes, 1992.
[iv]
Utilizo o termo “sociedade”em um sentido antropológico amplo, pois falando
propriamente não se trata de
“sociedades”, dado que as sociedades lésbicas não existem de forma
completamente autônoma, a margem dos sistemas sociais heterossexuais.
[v]
DE BEAUVOIR, S.: O Segundo sexo. México,
Alianza?Siglo XXI, 1989, p.240.
[vi] Redstockings: Feminist Revolution, New York, Random
House, 1978, p.18.
[vii] DWORIN, A.: “Biological
Superiority, The World’s Most Dangerous and Deadly idea”, Heresies, 6: 46.
[viii] ATKINSON, T-G.: Amazon
Odyssey, New York, links Boojs, 1974, p.15.
[ix]
DWORKIN, A. Ibidem.
[x]
GUILLAUMIN,C.: Ibidem.
[xi]
DE BEAUVOIR, S.: Ibidem.
[xii]
GUILLAUMIN, C.: Ibidem.
[xiii]
Lésbica hipermasculina. (N. dos T.)
[xiv]
DWORKIN,A.: Ibidem.
[xv]
ATKISON, T-G.: Ibidem, p.6: “Se o feminismo
quer ser lógico, deve trabalhar para obter uma sociedade sem sexo”.
[xvi] ROSENBERG, R.: “In Search of
Woman’s Nature”, Feminist Studiesm otoño, 1975, p.144.
[xvii]
Ibidem, p.146.
[xviii]
Em um artigo publicado em L’Idiote Internationale (maio 1990), cujo o título
original era “por um movimento de liberação das mulheres”.
[xix] ROCHEFORT, C.: Les stances à Sophie. Paris, Grasset,
1963.